quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Uma Democracia sem povo

Fábio Konder Comparato

Suponhamos que alguém entre em contato com um advogado para que este o
represente em um processo judicial. O causídico aceita o patrocínio dos
interesses do cliente, mas não informa o montante dos honorários, cujo
pagamento será feito mediante a entrega de um cheque em branco ao advogado.
Disparate sem tamanho?

Sem a menor dúvida. Mas, por incrível que pareça, é dessa forma que se
estabelece a fixação dos subsídios dos (mal chamados) representantes
políticos do povo. Com uma diferença, porém: os eleitos pelo povo não
precisam pedir a este a emissão de um cheque em branco: eles simplesmente
decidem entre si o montante de sua auto-remuneração, pagando-se com os
recursos públicos, isto é, com dinheiro do povo.

Imaginemos agora que o advogado em questão, sempre sem avisar o cliente,
resolve confiar o patrocínio dos interesses deste a um companheiro de
escritório, por ele designado, a quem entrega o cheque em branco.
Contrassenso ainda maior, não é mesmo?

Pois bem, é assim que procedem os nossos senadores, em relação aos suplentes
por eles escolhidos, quando se afastam do exercício de suas funções.
Não discuto aqui o montante da remuneração percebida pelos membros do
Congresso Nacional, embora esse montante não seja desprezível. Além dos
subsídios mensais propriamente ditos – quinze por ano –, há toda uma série
de vantagens adicionais. Por exemplo: o “auxílio-paletó” no início de cada
sessão legislativa (no valor de um subsídio mensal); a verba que cada
parlamentar pode gastar como bem entender no seu Estado de origem; as
passagens aéreas gratuitas para o seu Estado; sem falar nas múltiplas
mordomias do cargo, como moradia amplamente equipada, carro oficial e
motorista etc. Segundo o noticiado na imprensa, esse total da
auto-remuneração pessoal dos membros do Congresso Nacional eleva-se, hoje, à
cifra (modesta, segundo eles) de R$114 mil por mês.

Ora, tendo em vista o estafante trabalho que cada deputado federal e senador
realizam – eles trabalham, em média, três dias por semana –, resolveu o
Congresso Nacional, por um Decreto Legislativo datado de 19 de dezembro de
2010, elevar o montante do subsídio-base para a legislatura em curso em 62%
(por extenso, para confirmar a correção dos algarismos: sessenta e dois por
cento).

Ao mesmo tempo, consternados com o fato de perceberem remuneração superior à
do presidente e vice-presidente da República, bem como à dos ministros de
Estado, os parlamentares decidiram, pelo mesmo Decreto Legislativo, a
equiparação geral de subsídios.

Acontece que o subsídio dos deputados federais serve de base para a fixação
do subsídio dos deputados estaduais e dos vereadores, em todo o país. Como
se vê, a generosidade dos membros do Congresso Nacional, com dinheiro do
povo, não se limita a eles próprios.

Agora, perguntará o (indignado, espero) leitor destas linhas: – Como pôr fim
a essa torpeza? Pelo modo mais simples e direto: transformando o falso mandato político em
mandato autêntico. Ou seja, instituindo entre nós um verdadeiro regime
democrático, em substituição ao fraudulento que aí está. Se o povo é
realmente soberano, se ele elege representantes políticos para que eles
atuem, não em proveito próprio, mas em prol do bem comum do povo, então é
preciso inverter a relação política: ao em vez de se submeter aos
mandatários que ele próprio elegeu, o povo passa a exercer controle sobre
eles.

Alguns exemplos. O povo adquire o poder de manifestar livremente a sua
vontade em referendos e plebiscitos, sem precisar da autorização do
Congresso Nacional para tanto, como dispõe fraudulentamente a Constituição
(art. 49, inciso xv). O povo adquire o poder de destituir pelo voto aqueles
que elegeu (recall), como acontece em várias unidades da federação
norte-americana.

Nesse sentido, é de uma evidência palmar que a fixação do subsídio e seus
acréscimos, de todos os que foram eleitos pelo voto popular, deve ser
referendada pelo povo. Para tanto, o autor destas linhas elaborou um anteprojeto de lei,
apresentado pelo Conselho Federal da OAB à Comissão de Legislação
Participativa da Câmara dos Deputados em 2009, instituindo o referendo
obrigatório do decreto de fixação de subsídios, quer dos parlamentares, quer
dos membros da cúpula do Executivo. Sabem qual foi a decisão da Comissão?
Ela rejeitou o anteprojeto por unanimidade.

Confirmou-se assim, mais uma vez, o único elemento absolutamente constante
em toda a nossa história política: o povo brasileiro é o grande ausente. A
nossa democracia (“um lamentável mal-entendido”, como disse Sérgio Buarque
de Holanda) é realmente original: logramos a proeza de fazê-la funcionar sem
povo.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Ficha suja, vade retro

João Baptista Herkenhoff

“Vade retro, Satanás”, ou simplesmente “Vade retro”, é um exorcismo medieval utilizado para afastar o demônio. A expressão latina “vade retro” pode ser traduzida pelo vernáculo: “afasta-te”.

Suponho que é bastante apropriado recorrer à formula medieval para esconjurar os políticos manchados por condenação criminal: “vade retro, ficha suja”. O Supremo Tribunal Federal ainda não se pronunciou sobre a aplicação, nas próximas eleições municipais, da lei que obsta a candidatura dos ficha-suja. Será lamentável que fichas sujas possam disputar mandato de Prefeito e de Vereador no pleito eleitoral que se avizinha.

As pessoas mais simples e humildes, por sabedoria intuitiva, pensam que larápio não deve legislar ou governar. Mas essas pessoas mais simples e humildes, cuja consciência moral repudia os ladrões, não sabem o nome deles, nem mesmo o nome daqueles de seu município. É bastante difícil para o eleitor comum a análise da vida pregressa dos candidatos.

A lei que exclui da disputa eleitoral o ficha suja cumprirá esse papel: revelar ao povo, por exclusão, a face oculta dos desonestos. Seria altamente pedagógico que a lei que barra o ficha suja tivesse sua primeira vigência num pleito municipal. O Município é a célula fundamental da vida política. Os mandatos municipais – de Prefeito, Vice-Prefeito, Vereador – são os que devem ter maior significado moral para aqueles que por tais mandatos sejam consagrados. Não são apenas mandatos, são medalhas de mérito: representam o reconhecimento do povo a cidadãos da cidade onde a pessoa vive. Quanto à vereança, não é um emprego, é um serviço que, em outros tempos, era exercido gratuitamente.

É razoável que hoje se admita um moderado jeton indenizatório dos dias de trabalho do Vereador, sempre que o exercício da Vereança impuser perda de renda. A gula revelada por algumas Câmaras Municipais tem causado perplexidade. Justamente porque ser Prefeito ou Vereador é altissimamente honroso, os pretendentes a esses cargos não podem estar maculados por sujeira na biografia.

Torcemos para que, com lei de ficha limpa, ou sem lei de ficha limpa, sejam oferecidas ao povo informações seguras, de modo que o eleitorado possa dizer “vade retro, satanás”, “vade retro, politico de ficha suja”. Se houver uma grande campanha de esclarecimento, da qual deverão participar as instituições da sociedade civil, as igrejas, as escolas, será possível obter esse resultado. Se o Supremo boicotar a lei que exige ficha limpa, mas mesmo assim o povo recusar os ficha-suja, ficará evidente que o sentimento de cidadania do eleitorado supera o sentimento de cidadania dos ministros do STF.

João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado, é professor da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo e escritor. Acaba de publicar:Curso de Direitos Humanos, pela Editora Santuário, de Aparecida, SP. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage: www.jbherkenhoff.com.br

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Memórias de Cachoeiro e de lutas travadas

João Baptista Herkenhoff

A memória é dos maiores dons com que fomos largamente aquinhoados. Coloco na frase o advérbio largamente porque não apenas os seres humanos possuem memória. Também os animais memorizam lugares e pessoas. São bem conhecidas algumas histórias que revelam como alguns cães foram capazes de guardar caminhos e atalhos buscando socorro para salvar a vida de seus donos.

A memória expande-se em várias dimensões: memórias pessoais, memórias familiares, memórias de cidades, memórias de regiões ou Estados, memórias de países. Creio que não nos deve constranger o fato de prestar depoimento para a construção da memória pessoal e familiar. Nisto que oferecemos dados, para que se conheça essa memória restrita, contribuímos também para que se construa a memória mais ampla da cidade e do Estado porque a vida do indivíduo e de sua família está inserida na vida da comunidade. Com simplicidade dou esse testemunho.

No dia 20 de agosto de 2008 recebi dois prêmios do Governo do Espírito Santo: o Prêmio Dom Luís Fernandes e a Ordem do Mérito Jerônimo Monteiro. Nenhuma das duas láureas pertence a mim individualmente. Tentei provar isso no discurso proferido naquela oportunidade. Até onde a memória e alguns apontamentos escritos me socorrem, vou tentar reconstituir mais ou menos tudo o que disse. No decreto através do qual me outorgou a Comenda Jerônimo Monteiro, o Senhor Governador justificou o ato com referências a meu trabalho como juiz, professor, escritor, cidadão, militante na defesa dos direitos da pessoa humana sem distinção de raça, classe, religião, sexo ou qualquer outra. Disse então ao Governador Paulo Hartung:

Ora, Senhor Governador, se Vossa Excelência tem parcial razão nas justificativas – apenas exagerou no tom – os méritos encontrados não me pertencem solitariamente. Começo por lembrar aquela casa da Rua Vinte e Cinco de Março, em Cachoeiro de Itapemirim, casa dos meus pais, casa depois de minhas irmãs Mariazinha e Julitinha. Quantas vezes, não o atual Governador Paulo Hartung, mas o jovem acadêmico Paulo Hartung tomou um cafezinho naquela casa. Lembra-se do cafezinho, quase sempre às nove e meia da manhã? A mesa daquela casa era franqueada a todos, sem distinção. Os pobres não recebiam o pão na porta da casa. Os pobres entravam na casa, sentavam-se à mesa ao lado dos familiares. Se, como Vossa Excelência diz no decreto, eu defendi a dignidade da pessoa humana, acima de raça, cor, classe social, foi naquela casa que eu aprendi isso, com meu pai Alfredo, com minha mãe Aurora e com os irmãos mais velhos, pois eu era o caçula. Naquela casa eu aprendi que todos somos iguais, não apenas perante a lei, como diz a Constituição, porém iguais porque filhos do mesmo Deus, portadores da mesma alma imortal. E se desigualdade existe, superiores são os pobres porque neles estão impressas as chagas do Crucificado.

Nenhum de nós nasce de geração espontânea. De nossos troncos recebemos a herança espiritual. De minha parte, tenho troncos germânicos e troncos nordestinos. Reverencio esses troncos: os imigrantes alemães Mathias Herkenhoff e Emma Kölhbach Herkenhoff, meus avós da linha paterna. Daquele tronco nasceu meu pai Alfredo, que fundou a primeira escola noturna de Cachoeiro de Itapemirim, escola destinada aos trabalhadores, àqueles que não podiam estudar no colégio público, que naquela época só funcionava no turno da manhã. Daquele tronco nasceu meu tio Arno, um comerciante com idéias pioneiras, basta dizer que sua loja de brinquedos tinha um jornal, escrito por Newton Braga, o grande poeta de minha terra natal.

Na linha materna meus avós foram Pedro Estellita Carneiro Lins e Francisca Sampaio Lins, provenientes do Nordeste, mas que, na perene busca do pão a que se refere o Padre Vieira, foram para Santa Catarina, onde meu avô veio a ser juiz. Quando criança, eu era seu secretário. Aposentado, ele gostava de escrever. Os temas de seus livros eram sempre a Justiça e a Paz. Ele redigia os originais usando pena de pássaro, e pedia que eu os datilografasse. Como eu era muito bom aluno de Português, percebia seus “cochilos” gramaticais. Mas quando é que, naquele tempo, neto corrigia avô. Batia à máquina do jeito que ele tinha escrito. Quando ele via o texto bonitinho batido à máquina, dizia com a maior falta de cerimônia: João, meu neto, você bateu errado aqui. Será preciso datilografar tudo novamente. E eu, naturalmente sem reclamar, datilografava tudo, pois não era como hoje quando, no computador, podemos intercalar palavras, emendar etc.

Esse avô velhinho acreditava na Justiça e amava a Paz. Eu o contemplava com admiração e ternura. Foi esse avô que me inoculou no espírito a paixão pela Justiça, foi arrastado pelo exemplo silencioso dele que eu me tornei juiz. Depois um tio – Augusto Lins – em cuja casa eu ficava hospedado quando fazia o Curso de Direito, confirmou minha opção. Desse tio, que era advogado, eu aprendi, não apenas lições jurídicas, mas lições de humanismo e de vida. Quando uma pessoa humilde, conversando com ele, cometia erros de linguagem, ele, na resposta, cometia os mesmos erros. Perguntei certo dia se era por distração que ele repetia os erros. Ele respondeu que fazia isso para que o interlocutor não se sentisse humilhado com a reprodução correta de palavras faladas erradamente.

Por essas razões, eu recebo a Comenda Jerônimo Monteiro como homenagem a todos os membros da família Herkenhoff e da família Estellita Lins, eu a recebo como homenagem aos meus ancestrais alemães e nordestinos e àqueles que, nas gerações subsequentes, mantiveram e ainda mantêm acesa a chama.

Falemos agora do Prêmio Dom Luís, que estou recebendo juntamente com duas instituições da maior importância no Espírito Santo: o Fórum Permanente da Bacia do Rio Aribiri e o Movimento Educacional e Promocional do Espírito Santo (MEPES). Eu sei, Senhor Governador, que a mais alta condecoração que o Governo do Estado pode conceder é a Ordem do Mérito Jerônimo Monteiro, no grau de Comendador. Mas se Vossa Excelência me perguntar qual a homenagem que mais me toca o coração, eu respondo que não é esta de ser Comendador da Ordem do Mérito Jerônimo Monteiro, que tanto me honra, mas sim detentor do Prêmio que tem o nome de Dom Luís Gonzaga Fernandes. E isto, Senhor Governador, por uma razão extremamente pessoal. Eu recebi na infância educação religiosa, como toda a minha família. Uma educação religiosa condizente com a época, muito antes do Concílio Vaticano, muito antes de João XXIII, num tempo em que a Igreja Católica supunha deter o monopólio da verdade, uma pretensão vaidosa e nada teológica, pois que nenhum credo é dono da verdade, a verdade é um dom de Deus e Deus infunde essa verdade no coração humano, sem barreiras nacionais, sem barreiras raciais ou culturais, sem barreiras confessionais.

Não abdiquei do credo que aprendi na infância, mas me convenci de que esse credo impunha uma abertura ao Ecumenismo e opções no campo social. Dom Luís foi o principal artífice desta minha conversão. Foi Dom Luís que me convocou para o mais sério compromisso de minha vida: lutar pela Justiça na Comissão “Justiça e Paz” da Arquidiocese de Vitória. Com uma incrível pedagogia, ele foi me cativando pouco a pouco, dando-me para ler, a partir do início de 1976, certos escritos que me preparavam para a missão para a qual ele me escolheu. Fui o primeiro no chamamento. A segunda convocação recaiu sobre Vera Simoni, filha do apóstolo Amaro Simoni. Depois vieram os outros:Rogério Coelho Vello, Antônio César Menezes Penedo, Dante Pancini Pola, Sandro Chamon do Carmo, Ewerton Montenegro Guimarães, Pastor Claude Labrunie, Pastor Jaime Wright, Pastor Joaquim Beato, Ricardo Santos, o então Padre Geraldo Lyrio Rocha, hoje Bispo, Nestor Cinelli, Laurita Schneider, Marialva Vello, Amélia Ferreira Rosa, Auta Trindade, Maria Helena Teixeira de Siqueira, Ana Rita Sgario, Marlene Cararo, Irmã Heloísa Maria Rodrigues da Cunha (como secretária) e vários outros. Não estou pretendendo que esta lista seja exaustiva, pois não é.

Recebo o Prêmio Dom Luís em nome de todos estes. Recebo como representante de todos. Este prêmio não me pertence. Pertence a toda a equipe. Nenhum de nós teria condições de enfrentar sozinho as pelejas da época. Estávamos em plena ditadura. Telefonemas anônimos, ameaças pessoais, ameaça de sequestro de filho, bomba de efeito moral que explodiu no Colégio do Carmo, processos políticos secretos, chamamento a tribunal, registros nos órgãos de segurança, marginalização, incompreensão, anátemas. Nós nos apoiávamos, uns nos outros e em Deus. Só assim foi possível superar os perigos. Devo dividir o prêmio com todos estes e depois devo fazer uma outra divisão. A fração, que me toca, devo partilhar com Teresinha, minha mulher, companheira de todos os momentos, ela que também sofreu, pessoalmente, as consequências da arriscada opção.

Agradeço a presença de todos, os abraços recebidos, as palavras segredadas, os olhares, o carinho. Nas emoções deste momento, nomes deixarão de ser mencionados, palavras ficarão na garganta. Leiam meu rosto, queridos amigos. Minha face dirá o que as palavras deixarem de traduzir. Muito obrigado!