Fábio Konder Comparato
Suponhamos que alguém entre em contato com um advogado para que este o
represente em um processo judicial. O causídico aceita o patrocínio dos
interesses do cliente, mas não informa o montante dos honorários, cujo
pagamento será feito mediante a entrega de um cheque em branco ao advogado.
Disparate sem tamanho?
Sem a menor dúvida. Mas, por incrível que pareça, é dessa forma que se
estabelece a fixação dos subsídios dos (mal chamados) representantes
políticos do povo. Com uma diferença, porém: os eleitos pelo povo não
precisam pedir a este a emissão de um cheque em branco: eles simplesmente
decidem entre si o montante de sua auto-remuneração, pagando-se com os
recursos públicos, isto é, com dinheiro do povo.
Imaginemos agora que o advogado em questão, sempre sem avisar o cliente,
resolve confiar o patrocínio dos interesses deste a um companheiro de
escritório, por ele designado, a quem entrega o cheque em branco.
Contrassenso ainda maior, não é mesmo?
Pois bem, é assim que procedem os nossos senadores, em relação aos suplentes
por eles escolhidos, quando se afastam do exercício de suas funções.
Não discuto aqui o montante da remuneração percebida pelos membros do
Congresso Nacional, embora esse montante não seja desprezível. Além dos
subsídios mensais propriamente ditos – quinze por ano –, há toda uma série
de vantagens adicionais. Por exemplo: o “auxílio-paletó” no início de cada
sessão legislativa (no valor de um subsídio mensal); a verba que cada
parlamentar pode gastar como bem entender no seu Estado de origem; as
passagens aéreas gratuitas para o seu Estado; sem falar nas múltiplas
mordomias do cargo, como moradia amplamente equipada, carro oficial e
motorista etc. Segundo o noticiado na imprensa, esse total da
auto-remuneração pessoal dos membros do Congresso Nacional eleva-se, hoje, à
cifra (modesta, segundo eles) de R$114 mil por mês.
Ora, tendo em vista o estafante trabalho que cada deputado federal e senador
realizam – eles trabalham, em média, três dias por semana –, resolveu o
Congresso Nacional, por um Decreto Legislativo datado de 19 de dezembro de
2010, elevar o montante do subsídio-base para a legislatura em curso em 62%
(por extenso, para confirmar a correção dos algarismos: sessenta e dois por
cento).
Ao mesmo tempo, consternados com o fato de perceberem remuneração superior à
do presidente e vice-presidente da República, bem como à dos ministros de
Estado, os parlamentares decidiram, pelo mesmo Decreto Legislativo, a
equiparação geral de subsídios.
Acontece que o subsídio dos deputados federais serve de base para a fixação
do subsídio dos deputados estaduais e dos vereadores, em todo o país. Como
se vê, a generosidade dos membros do Congresso Nacional, com dinheiro do
povo, não se limita a eles próprios.
Agora, perguntará o (indignado, espero) leitor destas linhas: – Como pôr fim
a essa torpeza? Pelo modo mais simples e direto: transformando o falso mandato político em
mandato autêntico. Ou seja, instituindo entre nós um verdadeiro regime
democrático, em substituição ao fraudulento que aí está. Se o povo é
realmente soberano, se ele elege representantes políticos para que eles
atuem, não em proveito próprio, mas em prol do bem comum do povo, então é
preciso inverter a relação política: ao em vez de se submeter aos
mandatários que ele próprio elegeu, o povo passa a exercer controle sobre
eles.
Alguns exemplos. O povo adquire o poder de manifestar livremente a sua
vontade em referendos e plebiscitos, sem precisar da autorização do
Congresso Nacional para tanto, como dispõe fraudulentamente a Constituição
(art. 49, inciso xv). O povo adquire o poder de destituir pelo voto aqueles
que elegeu (recall), como acontece em várias unidades da federação
norte-americana.
Nesse sentido, é de uma evidência palmar que a fixação do subsídio e seus
acréscimos, de todos os que foram eleitos pelo voto popular, deve ser
referendada pelo povo. Para tanto, o autor destas linhas elaborou um anteprojeto de lei,
apresentado pelo Conselho Federal da OAB à Comissão de Legislação
Participativa da Câmara dos Deputados em 2009, instituindo o referendo
obrigatório do decreto de fixação de subsídios, quer dos parlamentares, quer
dos membros da cúpula do Executivo. Sabem qual foi a decisão da Comissão?
Ela rejeitou o anteprojeto por unanimidade.
Confirmou-se assim, mais uma vez, o único elemento absolutamente constante
em toda a nossa história política: o povo brasileiro é o grande ausente. A
nossa democracia (“um lamentável mal-entendido”, como disse Sérgio Buarque
de Holanda) é realmente original: logramos a proeza de fazê-la funcionar sem
povo.
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