domingo, 26 de fevereiro de 2012

Depoimento, dever do idoso

João Baptista Herkenhoff

A meu ver, um dos mais importantes deveres das pessoas mais velhas é o dever de prestar depoimento, testemunhar valores, dizer sobre aquilo que o depoente acredita ser correto. Essa obrigação alcança todos os idosos, não importa a profissão que exerceram ou ainda estejam exercendo.

É possível depor sobre todos os aspectos da vida (uma espécie de autobiografia), ou apenas sobre um ângulo da existência, ou sobre um fato isolado. O mais importante, para que o depoimento seja válido, é que seja sincero, ainda que possamos incorrer em falhas ou omissões por lapso de memória. Aliás, ter alguns esquecimentos é um dos direitos das pessoas de Terceira Idade.

O depoimento que presto a seguir refere-se a um aspecto da vida, a uma atividade desempenhada.

Fui membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória, convidado para esse encargo pelos bispos Dom João Baptista da Mota e Albuquerque e Dom Luís Gonzaga Fernandes. Naqueles tempos, em inúmeras situações concretas, a palavra oficial da Igreja foi expressada pela Comissão Justiça e Paz, por entenderem os Bispos que, diante de algumas matérias, a palavra mais apropriada devia ser dita por um organismo eclesial leigo. Depois de convocado para a CJP pelos Bispos, fui eleito seu presidente, pelos companheiros que integravam referida Comissão.

Pelo fato de estar exercendo a presidência da Comissão de Justiça e Paz respondi a processo disciplinar perante o Conselho Superior da Magistratura, que é o órgão que processa magistrados por condutas que sejam consideradas desvios éticos. Entendiam os desembargadores que, como magistrado da ativa, não podia presidir associações. Não entenderam, ou não quiseram entender, que a Comissão de Justiça e Paz não era uma associação, mas um organismo de Igreja. Quando recebi a intimação para a audiência, feita pelo Oficial de Justiça, em minha residência, telefonei para Dom Luís Gonzaga Fernandes pedindo que me aconselhasse sobre como eu deveria me defender.

Dom Luís aconselhou que eu abrisse o Evangelho e lesse aquela passagem: Quando fordes chamado ao tribunal por causa do meu nome, não vos preocupeis com o que haveis de dizer. O Espírito vos soprará.

Fiz o que o Bispo sugeriu e pensei: se D. Luís disse que basta isso, estou preparado. Perante a Corte, invoquei simplesmente a inviolabilidade da consciência para me isentar de punição. O meu julgamento foi realizado em segredo de Justiça. Hoje posso contar isto porque estou aposentado. Se na época revelasse esses fatos, responderia a novo processo, desta feita por violação de segredo de Justiça. Felizmente, pelo voto do Desembargador Homero Mafra, hoje falecido, fui absolvido. Se tivesse sido condenado, poderia ter sido excluído da magistratura ou recebido uma outra penalidade.

Integrei e presidi a Comissão Justiça e Paz quando o Brasil estava submetido a uma ditadura. Em nome da Fé, eu e meus companheiros enfrentamos perigos. Um dos maiores sofrimentos pessoais que tive foi a ameaça de sequestro de meu filho único, fato que felizmente não se concretizou. A Comissão de Justiça e Paz posicionou-se contra todos os abusos que então eram praticados, tanto em nível nacional, como na reprodução local desses abusos.

Um dos heróicos membros da Comissão foi o Dr. Ewerton Montenegro Guimarães, hoje falecido, que lutou bravamente contra o Esquadrão da Morte. Certo dia o Dr. Ewerton, em conversa ocorrida na minha residência, disse: Dr. João, eu tenho dúvida de Fé, eu não tenho certeza da existência de Deus. Respondi ao Dr. Ewerton: meu caro Ewerton, a Fé não é uma proclamação verbal. Você é um homem de Fé porque sua vida é uma vida de luta pela Justiça e a Justiça é manifestação de Deus. Tem Fé quem ama o próximo, mesmo sem proclamar o nome de Deus. Não tem Fé quem bate com a mão no peito e ignora o sofrimento dos irmãos.

João Baptista Herkenhoff, 75 anos, magistrado aposentado, professor da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo e palestrante Brasil afora. Autor de: Curso de Direitos Humanos (Editora Santuário, Aparecida, SP, 2011).

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Vereança e Serviço do Júri

João Baptista Herkenhoff

Para iniciar este artigo, cabe registrar um episódio que constitui referência ilustrativa da questão de fundo.

Quando eu era juiz de Direito no interior do Estado, recebi no Fórum a visita de um cidadão exemplar, na altura dos seus 77 anos. Depois dos cumprimentos de estilo, o digníssimo senhor perguntou sem rodeios se, a meu juízo, ele já era um velho sem préstimo. Respondi-lhe que de modo algum pensava isso sobre sua pessoa. Muito pelo contrário, ele era um patrimônio moral da comunidade.

Se é assim – indagou-me – por qual motivo o senhor me tirou do corpo de jurados?

Expliquei-lhe que não o havia tirado. Eu pensara no sacrifício que longos julgamentos imporiam a sua idade. Se é por essa razão, não desejo ser dispensado. Quero prestar o serviço do júri, enquanto minha saúde permitir.

Corrigi meu equívoco e repus o nome do impoluto varão na lista dos jurados. Na primeira sessão do Júri narrei o acontecido e lhe prestei a devida homenagem. O nome desse homem? Aimbiré Teixeira de Almeida. O senhor Aimbiré, um exemplo e uma adverência para os tempos modernos, faleceu aos 97 anos. Até os noventa e dois serviu ao Júri da Comarca de São José do Calçado.

Parece-me que hoje rareiam pessoas como esta. Já não são muitos aqueles que gostam de prestar serviços gratuitos à coletividade, traço que desenha o perfil de uma sociedade sadia nos seus vínculos de solidariedade. Está neste contexto discutir a função de Vereador, missão que dignifica qualquer pessoa.

A Vereança foi sempre gratuita na tradição brasileira. Em 1975 uma emenda constitucional derrubou essa tradição. A atual Constituição faculta à Câmara Municipal fixar a remuneração dos Vereadores, em cada legislatura, para vigorar na seguinte. Creio justa e democrática a fixação de um modesto jeton, de modo que cidadãos de posses limitadas possam cumprir a função. Se o exercício da Vereança viesse a constituir um fardo econômico, onerando justamente aquela pessoa de modestas possibilidades financeiras, a gratuidade seria elitista. Daí que o jeton indenizatório completa o sentido da tese da Vereança gratuita.

O que estamos presenciando, entretanto, não é o estabelecimento de um jeton moderado, mas de um jeton altissimo, até mesmo em câmaras que se reúnem duas vezes por mês. Nesses municípios de reuniões bimensais, a vereança poderia ser totalmente gratuita.

Muito mais que uma questão de gastos públicos, a matéria carrega conteúdo ético e cívico. São valores importantes os que estão em jogo: o serviço desinteressado à comunidade, a prevalência do sentido do coletivo, a recuperação da ideia de doar-se em contraposição ao individualismo estéril que grassa nestes tempos neoliberais.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Igualdade dos Estados

João Baptista Herkenhoff

Diga-se sem meias palavras: há no Brasil, por parte de pessoas e forças, a tentativa de superpor grandes Estados à face de Estados menores. Seja denunciado esse equívoco, não com a intenção de ampliar as cisões, mas com o desejo de contribuir para que os rumos sejam retificados.

Dentro dessa visão míope, só existe competência, criatividade e inteligência, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Até mesmo Estados poderosos como Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco são afastados do “grupo dos seletos”. Quanto a Estados como o Espírito Santo, nem se fale. São simplesmente excluídos do mapa.

No início da República, instalou-se a chamada “política café com leite”, na escolha dos presidentes da República. Um presidente era paulista (café), outro presidente era mineiro (leite). A política do “café com leite” foi derrubada pela Revolução de 1930. Seguiu-se a ditadura de Getúlio Vargas (gaúcho). Com a reconstitucionalização do país, em 1946, a Presidência da República foi ocupada por cidadãos das mais diversas unidades federativas, mas a predominância dos grandes Estados continuou.

A percepção deturpada, que conduz a essa situação, atua em diversas áreas. Na Medicina, só haveria grandes profissionais no circuito Rio – São Paulo, embora haja “brechas” dentro dessa primazia. Na Educação, as grandes universidades são as cariocas e paulistas, com pequenas exceções. Na Literatura, ninguém entra na “ceia dos cardeais” sem o beneplácito das editoras que exibam as siglas SP ou RJ. Na Justiça, só faz jurisprudência, destinada a ser bússola, aquela produzida pelos tribunais de São Paulo e do Rio, abrindo-se exceção, neste campo, para os tribunais federais sediados em Brasília. O Rio Grande do Sul conquistou espaço, ruidosamente, através dos alternativistas.

Registre-se que há resistências, cada vez maiores, a essa discriminação, inclusive há resistência dentro das unidades federativas destacadas.

Em razão dessa frequente falta de cuidado no debruçar-se diante dos pequenos, é que vibramos de orgulho e alegria quando um capixaba, em qualquer área da atividade humana, desponta no estrelato nacional, ou quando uma criação legitimamente nossa, como os pios de caça de Maurílio Coelho, despertam admiração e encantamento. Os pios são produzidos com delicadeza e arte, imitando com perfeição o pio das mais diversas aves. Destinavam-se, primitivamente, à caça, pois que, naquela época, as caças eram abundantes e não havia espécies ameaçadas de extinção. Como agora esse perigo de extinção é muito grande, não se deve fomentar essa atividade. Os pios, pela sua musicalidade, destinam-se hoje a constituir objeto de deleite para o espírito, descanso nesta vida atribulada, momento de interiorização e de paz. A fábrica de pios, na Ilha da Luz, em Cachoeiro, continua sendo levada avante por netos e bisnetos de Maurílio Coelho. Minha irmã mais velha, Lucília, era nora do criador da fábrica de pios, casada que foi com Jader Coelho, hoje falecido.

Mas se o realce do que se faz em nossas plagas estimula o ego, o desconhecimento nos entristece muito.

Em 2006 foi dado um grande destaque, nos mais diversos veículos de comunicação, ao diagnóstico que se fez da Justiça brasileira, inclusive com a tentativa de radiografar a cabeça dos magistrados. Este diagnóstico foi apresentado como absolutamente pioneiro, o que não é verdade.

Tive a oportunidade de publicar em 1977, pela Editora Resenha Universitária, um livro hoje esgotado, mas presente no acervo de algumas bibliotecas: “A Função Judiciária no Interior”. Mandei um exemplar para a VEJA, sem interferência de qualquer pessoa, sem conhecer jornalista algum da revista. A obra, para minha surpresa, recebeu duas páginas de comentário, na edição de 30 de março de 1977, com chamada de capa. Disse textualmente a VEJA:

“Qual será o perfil do juiz brasileiro da primeira instância, cerca de 2.000 homens sem rosto que, de certa forma, estão no centro dos problemas do Judiciário? O tema, até agora, tem vivido num deserto estatístico e sociológico. Mas algumas respostas podem estar começando a emergir, como as que aparecem em “A Função Judiciária no Interior”, dissertação de Mestrado apresentada à PUC/RJ pelo juiz João Baptista Herkenhoff, de Vitória, ES.”

João Baptista Herkenhoff, 75 anos, magistrado aposentado, é professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

O nosso Luthier


O bairro é um dos mais populosos de Conceição da Barra, o Santo Amaro, e sua simplicidade tem tudo a ver com o seu ilustre morador que vou apresentar agora a vocês.

Trata-se de Domingos Pereira, o nosso Luthier. Para quem não sabe, Luthier é a denominação do artista que fabrica instrumentos musicais de corda. No entanto, além violões, cavaquinhos, guitarras e contra-baixos e eventualmente, violinos, Domingos também confecciona instrumentos de percussão para os mais variados clientes que tem, inclusive do exterior. Atualmente, está trabalhando na confecção de uma guitarra havaiana, a pedido de um cidadão boliviano.

Domingos Pereira, barrense, começou tocando violão aos 10 anos de idade e quando da primeira necessidade em fazer um conserto no instrumento, decidiu fazê-lo sem a intervenção de ninguém. Daí em diante, aperfeiçou-se e não só conserta os instrumentos como os fabrica, além de conhecer a história de cada um, como é o caso da guitarra havaiana que faz questão de contar sua origem. Mas para você que deseja saber a origem da guitarra havaiana, convido-o a fazer uma visita ao nosso luthier. Ele lhe contará essa história e, quem sabe, você pode encomendar um instrumento que normalmente é fabricado sob encomenda e demora cerca de 2 meses para ficar pronto.

Quem quiser conhecer o Domingos, sua oficina e como ele prepara os excelentes instrumentos que fabrica, seu telefone é (27) 9991-7910. Valorize as pessoas de sua terra. Há muitos valores que não são divulgados e que realmente nos orgulham de ser de Conceição da Barra!

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O aumento do número de vereadores


De forma democrática, venho contrapor o que está sendo muito discutido no município de Ibatiba-ES. “ O aumento do Número de Vereadores”.

Friso desde já que o texto que segue tem a intenção de promover um debate democrático, ficando bem longe de um embate partidário ou pessoal, em respeito a opinião pública. A emenda constitucional aprovada no ano passado prevê que os municípios com mais de 25 mil habitantes pode ter de 11 ou mais vereadores. Sim, este é um tema bastante polêmico. A opinião da maioria das pessoas acerca do aumento de vereadores na câmara municipal é desfavorável. Principalmente pelo exorbitante salário ofertado aos eleitos. Enquanto funcionários públicos, há anos conclamam um levante a fim de conquistarem um aumento significante á seus vencimentos.

O aumento ou não da representatividade legislativa municipal não altera a fatia proporcional da câmara municipal de vereadores de Ibatiba-ES, que continuará sendo de 5% do orçamento municipal. Ou seja, independente do número de vereadores, 11 ou ate 15 edis, os valores destinados para cobrir os custos do parlamento municipal, vereadores, assessores, demais colaboradores e despesas mensais serão os mesmos. A quantidade menor de vereador não gera economia. A emenda constitucional não prevê o aumento da representatividade. O que eventualmente pode ocorrer é a redução de assessores ou mesmos da remuneração dos vereadores para atender a chegada dos novos.

Eu concordo com o aumento de vereadores pelo seguinte fato:

Poucas pessoas sabem como funcionam as campanhas eleitorais... Há quinze anos, os mesmos “políticos” que hoje são contra o aumento do número de vereadores, discordaram da diminuição dos mesmos. Antes a câmara tinha até 13 vereadores, e depois teve a diminuição para 9 vereadores. Temos que colocar na cabeça o seguinte: a quantidade de vereador não gera Economia para o município, os gastos são os mesmos, a população está consciente disto.

Vejamos o seguinte fato: as comunidades rurais e os bairros poderiam ter mais vereadores cobrando do prefeito, ações importantes para estas localidades. Enquanto o número a menos de vereadores, acaba a população ficando sem saber de seus interesses. E outra, se o número de vereador é maior ficam mais difíceis à manipulação através de conchavos e corrupção. Se os vereadores quisessem aumentar a representatividade sem onerar o município era só não aumentar o salário deles como está previsto. Não querem mais vereadores, só para favorecê-los na próxima legislatura.

Quanto maior o número dos mesmos, o salário dos vereadores automaticamente se dividirá, ou seja, o salário que antes era entregues para 9, será dividido para 11 ou mais. Quando um vereador diz que é desnecessário o aumento dos edis, ele está querendo mais economia para si próprio. Em minha opinião um município poderia ter um vereador em cada bairro, pois assim atenderia mais a população e abriria mais espaço para os novatos. Devemos lembrar que vereador legisla, ou seja, a obrigação deles é de proteger a constituição federal, atender a população e passar para o executivo que é o prefeito, quem executa as leis e as demais necessidades do município. Existem alguns vereadores que estão querendo aposentar na câmara. Por isso também gosto de jovens na política porque o que os municípios precisam de pessoas mais novas para atender melhor a necessidade da população. Mais isto não vem ao caso.

Enfim, limitado pelo espaço, declaro que sou a favor do aumento do número de vereadores, desde que a sociedade, o cidadão seja participativo dessa mudança. O eleitor deve através de seu voto eleger pessoas que possam representar a sociedade em geral, com qualificação que todos se sintam bem representados. Que o eventual aumento de vereadores de Ibatiba não baixe a qualidade pelos novos e jovens vereadores. Desde já peço que a sociedade pense bem, antes de tomarem qualquer decisão. As eleições será ano que vem não vendem seu voto e muito menos troque por algum interesse próprio. Lembre-se é na política que todos precisam de cada um de nós. Em suma agradeço desde já a colaboração de todos e peço que reflita melhor sobre o assunto.

Autora: Sávia Midiã Florindo Pereira de Brito – 16 anos – Presidente da JPMDB do Município de Ibatiba

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A tarefa de julgar

João Baptista Herkenhoff

Uma das grandes necessidades do ser humano é a segurança. Tudo que compromete o sentimento de estar seguro causa mal estar psicológico.

Não é por outra razão que algumas pessoas nunca se contentam com o primeiro parecer médico à face de uma enfermidade. Querem uma segunda e uma terceira opinião e só a unanimidade dos pontos de vista dos clínicos lhes proporciona tranquilidade.

Se a questão é jurídica, a diversidade, que se observa na interpretação das leis, incomoda e perturba: por que motivo dois juízes apresentam soluções opostas à face de um mesmo ponto? Tentemos ajudar na reflexão.

Se a tarefa de julgar consistisse apenas em aplicar ao caso concreto a lei existente, essa operação meramente lógica seria muito simples. Tão simples que seria mais barato substituir os magistrados por computadores. O jurista argentino Carlos Cossio operou autêntica revolução no campo do Direito, ao afirmar: O Direito é conduta, e não norma. Em consequência, não se pode conceber uma hermenêutica jurídica, senão do objeto jurídico – a conduta. Dentro dessa postura, o indivíduo julgado é integralmente substituído por sua fatalidade, ou contingência.

Sublinhou, com acerto, dentro dessa linha, Moura Bittencourt: “a necessidade do conhecimento pelo juiz do homem submetido a seu julgamento, muito mais do que o conhecimento dos autos.” E arrematou: “O legislador prevê os casos gerais, e é esse o destino da norma. Se o caso especialíssimo, não previsto, deve ser afastado da regra, cabe a palavra ao aplicador, que tem consigo a tarefa da vivificação do texto”. Não é diversa a advertência luminosa de Alípio Silveira:

“O aplicador não deve encerrar-se no domínio da rígida lógica formal e não deve dar valor maior às inferências.”

Não discrepa o ensino clássico de Carnelutti:

“O legislador tem as insígnias da soberania; mas o juiz possui as suas chaves.”

Triepel disse certa feita:

“A lei não é sagrada; só o Direito é sagrado.”

De Manzini colhemos a afirmação de que o interesse de manter a chamada segurança jurídica não pode prevalecer sobre o interesse de fazer triunfar a Justiça substancial sobre a Justiça meramente formal. Não se pode reduzir o juiz a mero porta-voz da lei, como queria Montesquieu.O Direito não se esgota na lei. Esta revela, quando revela, uma de suas faces. Direito é fato social, vivo e palpitante. Muito mais que um matemático ou um geômetra, o juiz é um artista e um pedagogo. Um artista, que usa a lei como argila, para construir poemas: poemas de vida, da vida pulsante que geme, chora e sua e que ecoa no pretório. Pedagogo porque educa, encaminha, aconselha, ama. Não são apenas petições que vêm aos juízes: são lágrimas, são faces, é gente como a gente, mais sofrida quase sempre.

O autorizado Pontes de Miranda colocou a oposiçãp “direito dos juristas e direito do povo”. Não é um “subversivo” da ordem jurídica que nega o monopólio da lei como instrumento normativo da conduta mas um douto, que foi consagrado em todo o Brasil e que, aqui mesmo no Espírito Santo, recebeu o “Prêmio Muniz Freire”, concedido pela Associação dos Magistrados. Está no “direito do povo” que ser criminalmente processado é, inquestionavelmente, uma pena, no sentido de que aflige. Sintomático é constar dos termos de interrogatório que o acusado “nunca foi preso e nem processado”. Em muitas situações, o simples fato de ser processado é para o acusado uma advertência suficiente, independente de uma efetiva condenação. O juiz não é um aplicador mecânico da lei. “A letra mata; o espírito vivifica”, disse o Apóstolo Paulo.

Toda norma penal contém uma advertência genérica, de disciplina social, que opera pela sua simples existência. A aplicação da norma abstrata aos casos concretos é entregue a homens, os juízes. No Espírito Santo, o então Juiz Homero Mafra absolveu dois jovens universitários, acusados de possuir e fumar maconha, embora reconhecendo expressamente a configuração do crime, para manter neles viva a esperança na misericórdia humana.

João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado, Supervisor Pedagógico e Professor Pesquisador da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo, escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage: www.jbherkenhoff.com.br