sábado, 18 de janeiro de 2014

Pastora de Reis



Bernadette Lyra

Estava debaixo de uma pilha de papel amarelado que o tempo e o esquecimento foram transformando em uma renda fina de bordas caprichosamente comida de traças. Eu a descobri antes de ser queimada, juntamente com o resto. Era uma crônica antiga, escrita quando ainda sobravam em mim as ressonâncias que o coração conserva, com alguma ingênua credulidade, sobre a inocência e a infância (Ai de mim que as perdi todas pelo caminho! Como disse Rimbaud, lamentando deixar a poesia).

O mais estranho é que essa descoberta se deu na última segunda-feira. Era dia de Reis. Uma operação combinatória do acaso, dessas que acontecem vez em quando e provocam um aperto no peito. É que naquela manhã eu vinha pensando em escrever sobre a data, hoje quase deixada ao esquecimento.

Sou uma dessas criaturas que não aceitam os fatos apenas em sua intenção racional. Acredito em uma zona axial que reúne razão e não-razão, onde a lógica aristotélica não conta. Então, como recusar o mistério? Como recusar a urgência de repassar adiante as palavras vindas de tantos anos atrás?

“Quando a gente era bem nova, Neia, Fana, Madel, Fafaninha, Toninha, Bebel, Gisa, Cerinha e tantas outras meninas de quem nem mais me lembro o nome (algumas já se foram, partiram para os campos da Indesejada; outras ainda estão por aqui, mas sumiram na espuma dos dias), quando a gente era bem nova, a gente era pastorinha do dia de Reis. Se era bonita ou feia não importa, que o menino, o Divino Menino, não cuidava de cara.

O Menino ficava ali quieto, deitado nas palhas e o burro e a vaca e o boi a espiarem do fundo com uns olhos redondos pela mansidão. Pedras em papel-cenário, pés de gravatá, palmas de guriri apanhadas na praia e areia. Era tudo o que formava o presépio. O presépio era lindo. Uma estrelona de purpurina rebrilhando no alto; o Menino sossegadinho, rosado, de braços esticados, dando uma vontade de apanhá-lo no colo; a Virgem a seu lado, de
manto e véu de algodão.

Quando a gente era pastorinha do dia de Reis, na Barra, a gente chegava e o povo emudecia. Todas vinham vestidas de branco, as cinturas com uma faixa vermelha, cestinhas nos braços, chapéus cheios de fitas. O povo emudecia. Só se escutavam os cantos da gente escoando no escuro da noite. Tinha a dança dos arcos. Arcos de cipó curvo, coberto por crepom colorido, constelado de rosas e bambu. Tinha as oferendas no chão para o Menino. Um carneirinho
alvo de louça; uma camisolinha bordada em linho e cambraia, costurada com delicadezas; uma cesta de cocadas de amendoim meigamente enfeitada. E o menino aceitando. O Menino sorrindo.

Depois chegavam os magos. Vestidos de manto de cetim e turbante. Gaspar feito pelo filho de um pescador da Bugia; Baltazar, pelo garoto que entregava os pães; Melchior, o mais velho, o mais compenetrado, era alguém que desapareceu de minhas lembranças. Mas, que em sonhos, às vezes me aparece em seus doze anos, de barba de algodão postiça e turíbulo
de incenso nas mãos.

‘Lá das plagas do oriente, viemos Vos adorar...’, os magos recitavam. O povo se ajoelhava na rua coberta de barro, o povo curvava a cabeça com muita devoção. A noite girava. A lua traçava um compasso azulado no céu. O mar marulhava. E o bandolim de dona Nininha acompanhava o marulho do mar.

Mas isso era no tempo em que a gente era nova. Quando a gente brincava naquele janeiro encantado, na Barra. Quando a gente tinha boca de cravo e de lírio, alma de pomba-rola, coração inocente e louvava ao Divino Menino. Quando a gente podia ser Pastora de Reis”.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Em honra dos fotógrafos

João Baptista Herkenhoff
 
 No Dia Nacional do Fotógrafo, que acabou de transcorrer, creio ser justo homenagear esses profissionais, cujo trabalho é tão útil à sociedade.
 
Comecemos pelo repórter fotográfico. Como as notícias seriam insossas se as palavras não fossem acompanhadas por imagens. Em algumas situações, a imagem diz quase tudo e o texto é apenas um complemento da mensagem.
 
 Enquanto a fotografia jornalística dirige-se a milhares ou milhões de espectadores, a fotografia pessoal ou familiar restringe-se às pessoas abarcadas pelo acontecimento registrado, seja um batizado, um casamento, uma viagem ou outro evento personalíssimo. Nestas hipóteses de uso doméstico, a fotografia eterniza o momento e permite que seja relembrado com emoção e ternura por anos a fio e até ultrapassando gerações.
 
Neste artigo quero homenagear um fotógrafo em particular, um fotógrafo de fama internacional, nascido no Brasil. Trata-se de Sebastião Salgado.
 
Sebastião Salgado foi reconhecido pelos grandes críticos da arte fotográfica, como alguém que foi capaz de produzir fotos de mérito singular. Muitos especialistas consideram-no “primus inter pares”.
 
Além de exímio artista, Sebastião Salgado fez da fotografia instrumento de afirmação de valores humanistas e de denúncia de tudo aquilo que agride a dignidade humana. Cito algumas de suas obras inspiradas nessa direção:
 
a) documentou fotograficamente a seca no Norte da África, num trabalho realizado em colaboração com a ONG “Médicos sem Fronteiras”;
 
b) também documentou, com a cooperação UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o drama de crianças vitimadas pela fome, em várias partes do mundo;
 
c) testemunhou através da fotografia os grandes flagelos que vitimam multidões empobrecidas: trabalhadores sem terra, migrantes, refugiados;
 
d) produziu grandioso documentário sobre o desalojamento em massa de hordas de seres humanos.
 
Longe de cair em depressão ao concluir essas tarefas, Sebastião Salgado acenou para a Esperança:
 
"Mais do que nunca, sinto que a raça humana é somente uma. Há diferenças de cores, línguas, culturas e oportunidades, mas os sentimentos e reações das pessoas são semelhantes. Pessoas fogem das guerras para escapar da morte, migram para melhorar sua sorte, constroem novas vidas em terras estrangeiras, adaptam-se a situações extremas…"
 
Salgado tinha consciência de que sua arte estava ligada a sua condição de brasileiro. Declarou numa entrevista:
 
“Venho de um país subdesenvolvido onde os problemas sociais são muito intensos. E assim torna-se inevitável que as minhas fotos reflitam isso. Creio que exista uma forma latino- americana de ver o mundo”.
 
João Baptista Herkenhoff é Juiz de Direito aposentado (ES) e escritor.  E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br