Bernadette Lyra
Estava
debaixo de uma pilha de papel amarelado que o tempo e o esquecimento foram transformando
em uma renda fina de bordas caprichosamente comida de traças. Eu a descobri
antes de ser queimada, juntamente com o resto. Era uma crônica antiga, escrita
quando ainda sobravam em mim as ressonâncias que o coração conserva, com alguma
ingênua credulidade, sobre a inocência e a infância (Ai de mim que as perdi todas
pelo caminho! Como disse Rimbaud, lamentando deixar a poesia).
O
mais estranho é que essa descoberta se deu na última segunda-feira. Era dia de
Reis. Uma operação
combinatória do acaso, dessas que acontecem vez em quando e provocam um aperto
no peito. É que naquela manhã eu vinha pensando em escrever sobre a data, hoje
quase deixada ao esquecimento.
Sou
uma dessas criaturas que não aceitam os fatos apenas em sua intenção racional.
Acredito em uma zona axial que reúne razão e não-razão, onde a lógica
aristotélica não conta. Então, como recusar o mistério? Como recusar a urgência
de repassar adiante as palavras vindas de tantos anos atrás?
“Quando
a gente era bem nova, Neia, Fana, Madel, Fafaninha, Toninha, Bebel, Gisa,
Cerinha e tantas outras meninas de quem nem mais me lembro o nome (algumas já
se foram, partiram para os campos da Indesejada; outras ainda estão por aqui,
mas sumiram na espuma dos dias), quando a gente era bem nova, a gente era pastorinha
do dia de Reis. Se era bonita ou feia
não importa, que o menino, o Divino Menino, não cuidava de cara.
O
Menino ficava ali quieto, deitado nas palhas e o burro e a vaca e o boi a espiarem
do fundo com uns olhos redondos pela mansidão. Pedras em papel-cenário, pés de
gravatá, palmas de guriri
apanhadas na praia e areia. Era tudo o que formava o presépio. O presépio era
lindo. Uma estrelona de purpurina rebrilhando no alto; o Menino sossegadinho,
rosado, de braços esticados,
dando uma vontade de apanhá-lo no colo; a Virgem a seu lado, de
manto
e véu de algodão.
Quando
a gente era pastorinha do dia de Reis, na Barra, a gente chegava e o povo emudecia.
Todas vinham vestidas de branco, as cinturas com uma faixa vermelha, cestinhas
nos braços, chapéus cheios de fitas. O povo emudecia. Só se escutavam os cantos
da gente escoando no escuro da noite. Tinha a dança dos arcos. Arcos de cipó curvo,
coberto por crepom colorido, constelado de rosas e bambu. Tinha as oferendas no
chão para o Menino. Um carneirinho
alvo
de louça; uma camisolinha bordada em linho e cambraia, costurada com delicadezas;
uma cesta de cocadas de amendoim meigamente enfeitada. E o menino aceitando. O Menino
sorrindo.
Depois
chegavam os magos. Vestidos de manto de cetim e turbante. Gaspar feito pelo
filho de um pescador da Bugia; Baltazar, pelo garoto que entregava os pães;
Melchior, o mais velho, o mais compenetrado, era alguém que desapareceu de
minhas lembranças. Mas, que em sonhos, às vezes me aparece em seus doze anos,
de barba de algodão postiça e turíbulo
de
incenso nas mãos.
‘Lá
das plagas do oriente, viemos Vos adorar...’, os magos recitavam. O povo se ajoelhava
na rua coberta de barro, o povo curvava a cabeça com muita devoção. A noite
girava. A lua traçava um compasso azulado no céu. O mar marulhava. E o bandolim
de dona Nininha acompanhava o marulho do mar.
Mas
isso era no tempo em que a gente era nova. Quando a gente brincava naquele janeiro
encantado, na Barra. Quando a gente tinha boca de cravo e de lírio, alma de
pomba-rola, coração inocente e louvava ao Divino Menino. Quando a gente podia
ser Pastora de Reis”.
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