Por Bernadette Lyra
E
assim, depois de muitas e muitas horas em um aeroporto paulista fatiado de
empurrões e apertos, você consegue se aboletar no avião e esperar até que a voz
impessoal do piloto avisa que somos o número cinco na fila de espera da
decolagem e, portanto, tudo vai bem. É que lá na
frente, sentado em sua cabine, ele não vê o que vai acontecendo aqui atrás. Tem
quem suspire, quem se inquiete, quem reze, quem manifeste em altos brados sua
determinação em processar a companhia. A aeromoça já passou a bandeja com as
balas, ajeitou as maletas que ameaçavam cair, acalmou os que entraram em
pânico, exauriu sua cota de sorrisos. Quando finalmente o pássaro decola,
acontece um silêncio de alívio. Pelo menos até que o bebê do assento vizinho resolva
que é hora de fazer sua entrada no show, seguido pela manifestação de mais uns
dez bebês espalhados pela aeronave.
De
repente é aquela corrente pra frente de choros e gritos, como só bebês
esfomeados sabem organizar. Você faz o possível para não ceder à vontade de
sacudir o pequeno iniciador do tumulto, que a mãe embalança com cara de quem
pede desculpas à plateia. Pensa que é natural que os bebês se exasperem. Bota a
culpa de sua própria exasperação no estresse, e se vira de lado, tentando ver
além da janelinha que lhe coube no bojo daquele cilindro de
asas. Mas só o que vê é uma maçaroca de nuvens que vão engolindo e balançando a
nave, impedindo que você desfrute a paisagem, lá embaixo.
Nada
de apreciar a beleza dos rios e as cidades que se encaixam como brinquedinhos
entre montanhas e beiras de praia. Nada de se encantar com a coloração azul do
mar que vai se raiando da cor de esmeralda. Só a escuridão em pleno dia. Nem
mesmo se vê a longa fita de areia
da Praia da Costa, o Morro do Moreno, o Convento da Penha ainda diminuto, o
contorno da ilha que sempre se delineia toda cheia graça. O que você vê pela
janelinha é um nunca acabar de gigantescas massas carregadas de chuva, é uma
corrente grossa, escura e ameaçadora que se estende como traiçoeira serpente de
leste a oeste, é uma aterrorizante amorfa
camada em que o avião se engolfa aos sacolejos até que, de repente, mergulha em
direção ao pouso.
Os
passageiros se entreolham como cúmplices em alguma coisa que os deixa assustados.
Nada de encantamentos com a descida, a porta aberta, o solo tão desejado, tão
aberto à luz e à brisa da cidade amada. Você sai, desce a escada, patina no
asfalto coberto de água e caminha em direção à sala de restituição da bagagem.
No saguão, lá estão os que esperam por você, suportando o mau tempo, os
inconvenientes e o atraso. E depois é um nunca acabar de notícias que roem seu
coração.
Todo
o Espírito Santo está debaixo da carga pesada de uma tempestade sem fim. Por
todos os lados,
enchentes, perdas, desabamentos. Por todos os lados, dor, morte, privações. O
Natal se foi engolfado nesse pesadelo. Você bem que tentou escutar os sininhos,
cantar Jingle Bells, elevar o astral. Porém festa nenhuma tem suporte para
tanta amargura.
Agora,
correram alguns dias. O sol apareceu uma manhã, de repente. Começou a brilhar.
O pior já passou, dizem para você. Mas você nunca vai esquecer. É bom que não
esqueça. É bom que ninguém esqueça. Para que não se acredite que tudo está
resolvido, apenas porque o sol começou a brilhar e foi se estendendo, lambendo
telhados, varandas e vidraças com uma bondade suspeita. E para que um pacto de
solidariedade se faça em volta deste ano novo, circulando a terra capixaba como
uma interminável cerimônia de garras de coral e espumas.