sexta-feira, 29 de abril de 2011

As alegrias de um aposentado

João Baptista Herkenhoff

Nem todas as pessoas reagem da mesma forma diante da aposentadoria. Alguns celebram este fato com alegria, o que me parece muito salutar. Outros recebem a aposentadoria como epílogo, com um certo sofrimento, atitude que não é de forma alguma aconselhável. De minha parte tive um sentimento de vazio quando me aposentei de todo. Senti-me desprovido de uma identidade profissional. Depois superei este sentimento, como vou contar nesta página.

Ao preencher a ficha de um hotel, em Santa Catarina, diante do ítem profissão, acudiu-me a dúvida. Que profissão vou colocar aqui? Juiz aposentado, professor aposentado? Isto não é profissão. A condição de aposentado não desmerece ninguém. Pelo contrario, é muito honroso conquistar uma aposentadoria após décadas de trabalho. Contudo, a situação de aposentado não define uma profissão.

Instantaneamente veio a inspiração e escrevi: Professor itinerante. Não que já fosse realmente um professor itinerante, mas aquela auto-constatação traçou para mim um roteiro pós-aposentadoria: eu seria um professor itinerante. É isso que tenho sido. Ando a rodar pelo meu Estado e pelo Brasil ministrando seminários e proferindo palestras. Nessa minha itinerância percorri todos os Estados brasileiros, exceto Tocantins e Amapá.

Os temas mais frequentes dos seminários têm sido: Hermenêutica Jurídica e Ética das profissões jurídicas. As palestras isoladas têm abrangido um leque mais vasto de assuntos. Se o aposentado sentir-se feliz, sorvendo simplesmente a aposentadoria, essa atitude não merece qualquer reparo. Ele fez jus ao que se chama ócio com dignidade (otium cum dignitate).

O pedagogo tcheco Comenius ensina:

“No ócio, paramos para pensar. Ou seja, no ócio paramos externamente para correr no labirinto do autoconhecimento, para investigar nossa condição de seres humanos. Não se trata de passar o tempo, de perder o tempo, mas de penetrar no tempo (no instante eterno) para mergulhar no essencial. Não é tempo perdido, é sagrado e consagrado. Tempo humanizador.”

Usei o verbo no presente do indicativo – Comenius ensina, e não no passado – Comenius ensinou, embora se trate de um escritor morto, porque a sabedoria não morre.

Se quem se aposentou pode desfrutar da aposentadoria serenamente e com espírito livre, numa situação inversa haveremos de ponderar que a aposentadoria não tem de, necessariamente, marcar um encerramento de atividades. É também saudável continuar trabalhando se essa atividade suplementar traz alegria. O aposentado tem experiência e pode transmitir experiência, o que resulta num benefício para a sociedade.

Triste é constatar que, em algumas situações, a aposentadoria é insuficiente para os gastos da pessoa e de sua família obrigando o aposentado a trabalhar para complementar o parco benefício que lhe é pago. Nestas hipóteses, estamos diante de uma injustiça, de um grande desrespeito ao valor do trabalho e à dignidade da pessoa humana.

Os pífios proventos, que castigam algumas categorias de aposentados, atentam contra a Constituição Federal, pois que esta assegura aos aposentados em geral a irredutibilidade do valor dos benefícios (art. 194, parágrafo único, inciso IV). Sempre que se aumenta a diferença entre o que ganham ativos e inativos agride-se a Constituição na sua letra e no seu espírito. Se nos socorrem os princípios de Justiça Social que alimentam a Constituição, jamais a Administração discriminará o aposentado, mormente no que se refere a proventos. Se alguma diferença devesse ser estabelecida entre ativos e inativos seria para aquinhoar com favorecimento os inativos, uma vez que a idade provecta cria gastos com saúde que normalmente não alcançam os servidores mais jovens.

No meu caso não continuei trabalhando para suplementar renda, mas sim para atender um apelo existencial.

Gosto de viajar, não tenho medo de avião, alegra-me conhecer lugares e pessoas, minha mulher também gosta e aí vamos nós, dois aposentados, desbravando o Brasil.

João Baptista Herkenhoff, 74 anos, Professor da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES), palestrante Brasil afora e escritor. Autor do livro Filosofia do Direito(Editora GZ, Rio de Janeiro, 2010). E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage:www.jbherkenhoff.com.br

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Plebiscito sobre Desarmamento

João Baptista Herkenhoff

O plebiscito e o referendo são institutos destinados ao exercício direto do poder.

O plebiscito antecede a lei. Consiste em indagar se o povo quer seguir este ou aquele caminho.

O referendo, ao contrário, é posterior à lei. Ocorre quando a vigência de uma determinada lei fica subordinada à aprovação do eleitorado. Referendar é justamente isso – aprovar ou rejeitar o que foi previamente estabelecido.

Na história recente do Brasil, tivemos um plebiscito e um referendo.

Em 1993 foi realizado um plebiscito sobre forma e sistema de governo. O povo decidiu que o Brasil deveria continuar adotando a república (como forma de governo) e o presidencialismo (como sistema de governo).

Em 2005 tivemos um referendo a respeito da proibição do comércio de armas de fogo e munição. O Congresso havia decidido pelo desarmamento e o eleitorado recusou a lei dizendo – não.

No referendo acima citado, o povo negou aprovação à lei que o Congresso tinha votado. Era uma lei já pronta que a maioria repudiou.

Agora, se houver um plebiscito, o povo não vai decidir se aprova ou rejeita uma lei pronta e acabada, mas vai optar por um rumo. Se decidir a favor do desarmamento, caberá ao Congresso fazer a lei desarmamentista, em clima de amplo debate com a sociedade.

Parece-me que sobre a questão do desarmamento o plebiscito é instrumento politico e pedagógico muito mais adequado do que o referendo.

Pode ser colocada uma objeção à realização do plebiscito neste momento da vida brasileira. Pode ser ponderado que não haverá isenção (ou cabeça fria, como se diz na linguagem popular) para discutir desarmamento após a tragédia de Realengo. A comoção popular é grande demais. O eleitor entrará na cabine secreta para votar com a imagem das crianças mortas pelas balas assassinas. Com essa imagem na retina o voto será necessariamente a favor do desarmamento geral. Prosseguindo o raciocínio na linha da objeção citada. O debate circunscreve-se a este ponto? Trata-se apenas de dizer “Realengo nunca mais”? A fixação na tragédia não empobrece o debate? Não há questões laterais que, na verdade, são questões centrais?

Parece-me que se faz necessário um debate bem amplo sim. Mas não me parece que o pesadelo de Realengo seja óbice à amplitude da discussão.

Todo professor sabe que quando vai dar uma aula precisa despertar a motivação nos alunos. Motivar é provocar o interesse. Plebiscito segue a mesma linha pedagógica. A nacionalidade está motivada para discutir desarmamento.

A meu ver o plebiscito deve ocorrer ainda neste ano. Se nosso povo, com todas as forças da alma, discutir desarmamento, violência, futuro da juventude, televisão para educar, escola de excelente qualidade para todos, de modo a provocar o ingresso do Brasil num novo ciclo histórico, o sangue daquelas crianças, tão crianças como nossos filhos e netos, não terá jorrado inutilmente.

João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado, é professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES), palestrante Brasil afora e escritor. Autor de Dilemas de um juiz – a aventura obrigatória. (Editora GZ, Rio de Janeiro).

E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

Hompegage: www.jbherkenhoff.com.br

terça-feira, 19 de abril de 2011

Eu confio em você

João Baptista Herkenhoff

Histórias antigas podem servir para reflexão nos tempos atuais. Jovens com menos de 25 anos entendem isto muito bem. Demonstram mais interesse por relatos do passado do que as pessoas que estão na segunda idade. Os extremos da vida – jovens e velhos – encontram uma grande sintonia.

Há muitos anos passados um empregado da antiga companhia telefônica do Espírito Santo foi preso com uma quantidade grande de tóxico. Devido à quantidade, o flagrante policial foi lavrado como tráfico de drogas. Comparecendo a minha presença, no fórum de Vila Velha (ES), o indiciado alegou que comprava uma quantidade maior de entorpecente para não sofrer exploração no preço. Era, entretanto, apenas usuário e só fumava nos fins de semana.

Acreditei de imediato no preso. Juiz calejado no ofício conhece quem fala a verdade e quem mente. Mas era preciso que viessem para os autos os documentos comprobatórios do que o preso me dizia. O processo é público, a Justiça é hierarquizada, os atos do Juiz estão sujeitos a reexame do Tribunal. Não basta que o juiz esteja pessoalmente convencido de um fato para que esse convencimento dê embasamento a sua decisão. É preciso também que os elementos para a decisão estejam dentro do processo. Expliquei tudo isso ao preso, determinei que fosse aberta vista dos autos à Defesa para as alegações preliminares e a juntada dos documentos necessários e fiz constar do assentamento todos estes detalhes.

O diligente advogado, já no dia seguinte, dava entrada no seu petitório, acompanhado da documentação adequada. A condição de homem honesto, chefe de família, estimado no seu círculo de convivência, todas essas qualidades positivas do preso ficaram provadas. Determinei sua volta imediata a minha presença.

Sempre acreditei e até hoje acredito no poder da palavra. Aquele momento era importante demais para ser um momento burocrático. Pedi ao preso que se levantasse e encarando-o, eu o chamei pelo seu prenome e disse: “Fulano, eu confio em você”. Ele respondeu firmemente: “Pode confiar, doutor.”

Concedi-lhe então liberdade, através de despacho oral. Oficiei à empresa pedindo que não o dispensasse. O ofício foi discutido na diretoria. Alguns alegavam que para cada vaga de trabalho havia uma dezena de candidatos, a empresa não tinha motivo para manter maconheiros nos seus quadros. Outros ponderaram que se tratava de um pedido do juiz e que assim devia ser acolhido. Prevaleceu a opinião favorável à manutenção do empregado.

Alguns anos depois, quando realizei uma pesquisa universitária sobre prisão e liberdade, a pessoa beneficiada pela oportunidade concedida voltou a minha presença para ser ouvido, pois a pesquisa consistia justamente em verificar o êxito ou fracasso de medidas alternativas ao aprisionamento.

Depois de responder todas as perguntas que lhe foram feitas, o antigo suposto traficante abre uma caixinha e retira dela uma medalha de “honra ao mérito”, outorgada a sua pessoa quando completou dez anos de casa. Entrega-me a medalha dizendo:

“Doutor, esta medalha lhe pertence. Se naquela tarde eu tivesse ficado preso, garanto ao senhor que viraria um bandido.”

Quis recusar a oferta, mas ele disse, peremptoriamente, que não voltaria para casa com a medalha. Está comigo até hoje, guardada num lugar especial.

João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado, 74 anos, é professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES) e palestrante Brasil afora. Autor do livro Mulheres no banco dos réus – o universo feminino sob o olhar de um juiz (Editora Forense, Rio, 2009).

E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

Homepage: www.jbherkenhoff.com.br

sábado, 16 de abril de 2011

A obra que precisamos

O senso comum, comprovado pelas pesquisas encomendadas por quem exerce o poder central estão sempre apontando que a maior exigência da população é a execução de obras. Uma cidade, aos olhos da massa populacional, só consegue visualizar algum avanço administrativo, na medida em que anda pela cidade e percebe a terra remexida pronta para receber paralelepípedos, manilhas, meios-fios, etc...

Parece óbvio que as obras sejam o carro-chefe de qualquer governo, seja ele de uma cidade, estado ou até mesmo, um país, como é o caso neste momento, do Brasil que tem um compromisso de se preparar para receber milhares de turistas por conta dos eventos Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016. Entretanto, quando olhamos para outros aspectos, percebemos o quanto é fundamental se fazer uma análise profunda sobre a real necessidade de um povo, sobretudo naquele momento histórico, e ter a humildade de perceber o que realmente é necessário para que seja estabelecida a felicidade das pessoas, através de ações governamentais.

É preciso ter sensibilidade e conhecer realmente as prioridades de uma cidade para que se faça as intervenções necessárias. Não podemos nos basear num modelo pré-concebido, cuja origem é uma cidade que não vive os problemas que vivemos, para determinar como investiremos os recursos públicos. Investir recursos públicos numa cidade a partir de uma pesquisa de opinião, necessariamente não é o que podemos chamar de competência administrativa. Isto é, no mínimo, incapacidade de perceber o que a cidade realmente precisa, conformando-se em dar o que ela quer e, nem sempre, o que as pessoas querem, é o que elas realmente necessitam. Se fosse assim, não precisaríamos da política; bastava contratar marqueteiros e fazer campanhas de convencimento sobre "quem deveria nos governar".

Em Conceição da Barra vivemos um momento atípico. A violência tem sido nosso principal problema há anos, no entanto, muito pouco tem sido feito para conter esse problema. As soluções enlatadas não estão dando o resultado esperado e as pessoas estão morrendo, seja por uso do crack ou por causa desse uso. Não podemos nos contentar em saber que existe uma ação governamental, lenta, que consiste em criar canteiros de obras, como é o caso da reforma do prédio da Prefeitura Municipal que se arrasta há quase 1 ano, e achar que administrar uma cidade se resume a isso. Temos muitos problemas sociais e sem investimento público, não há como dirimi-los e esse investimento não necessariamente são através de obras feitas com cimento, areia e tijolos.

Se realmente queremos mudar a realidade, devemos enfrentá-la e não administrar a cidade de acordo com resultados de pesquisas de opinião, cujo resultado reflete apenas a fragilidade das pessoas em opinar acertadamente, motivadas por anos e anos de engodo e da política do pão e circo. Para de fato mudar Conceição da Barra é preciso que saibamos que paradigmas devem ser quebrados. Não paradigmas comportamentais da sociedade, este, de fato, não é fácil de se mudar, mas para quem exerce o poder e tem, no mínimo, quatro anos de prazo, é preciso fazer o que é necessário e não o que o levará à reeleição.

A propósito, a reeleição é legítima e deve ser considerada, porém, que simbolize a vontade das pessoas associada ao desenvolvimento da cidade como um todo, do contrário, será apenas a troca do seis pelo meia-dúzia. Não é justo aproveitar-se da fragilidade das pessoas para cumprir o velho jargão "na terra de cego que tem um olho é rei". Eu já até escrevi sobre isto antes, mas é sempre bom lembrar que não quero ser habitante de uma "terra de cegos" nem muito menos acreditar que ter apenas um olho é fundamento básico para se tornar o líder máximo.

Precisamos nos conscientizar de que política se faz em conjunto e ainda assim, corremos sérios riscos de errar. Contudo, o erro em conjunto, nos dá a possibilidade de encarar nossas falhas e reconstruir nossos conceitos. O modelo de governo que vivenciamos em Conceição da Barra, está anos luz de um modelo verdadeiramente democrático, afinal, se as vozes que deveriam ecoar são caladas por vários meios de opressão, dentre os quais, o econômico, não há como admitir que a democracia é efetivamente exercida aqui.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Democratização da Justiça

João Baptista Herkenhoff

A eleição dos presidentes dos tribunais, seja na Justiça Federal ou na Justiça dos Estados, seja na Justiça comum ou nas Justiças especializadas, seja nos primeiros degraus da jurisdição ou nos degraus superiores, continua nas mãos das cúpulas judiciárias. Até este momento, o eco aos apelos para a democratização na escolha dos dirigentes dos tribunais foi nulo ou apenas medíocre. Nem mesmo um debate público entre os pretendentes aos cargos diretivos teve o merecido acolhimento.

A eleição de presidentes de tribunais ainda está sendo tratada como questão interna corporis, ou seja, questão que deve ser resolvida internamente.

Em contraste com a surdês das culminâncias, é forte o reclamo das bases, no sentido de se tratar as eleições para a presidência das cortes judiciais como matéria de interesse coletivo. A eleição de dirigentes de tribunais de Justiça pelo conjunto dos magistrados, ou até mesmo pelo eleitorado, tem sido defendida amplamente no país, de muito tempo.

No Espírito Santo, em 1997, o Deputado Sávio Martins apresentou, na Assembleia Legislativa, emenda constitucional modificando o sistema de escolha dos dirigentes da Justiça estadual. A emenda constitucional do deputado pretendia que presidente, vice-presidente e corregedor geral da Justiça fossem eleitos pelo conjunto dos magistrados. Ainda no Espírito Santo, emenda do Deputado Cláudio Vereza (1999) voltou a propor que todos os magistrados votassem, na escolha dos dirigentes do Tribunal de Justiça.

Em São Paulo, a Emenda constitucional n. 5, de autoria do Deputado Campos Machado (1999), pretendia modificar o sistema eleitoral para escolha do Conselho Superior da Magistratura.

Em 2002, a Associação dos Magistrados Brasileiros tomou posição favorável à eleição direta dos dirigentes de tribunais.

Em 28 de abril de 2002, em artigo no Jornal do Brasil (Iguais e mais iguais), Marcelo Anátocles, Juiz de Direito, manifestou-se a favor das eleições diretas nos Tribunais de Justiça.

Defendemos esta ideia na Segunda Conferência dos Juízes de Direito do Espírito Santo (1º.10.1967).

Voltamos ao tema no livro “Como Aplicar o Direito”:

Creio que deveria ser constitucionalmente modificado o sistema de eleição dos presidentes dos Tribunais de Justiça, escolhidos atualmente apenas por seus pares. Ainda que não se adote o sufrágio universal para a respectiva escolha, os presidentes dos Tribunais deveriam ser eleitos por um colégio eleitoral do qual participem, pelo menos, representantes da Justiça de primeira instancia e do corpo de advogados. (“Como Aplicar o Direito”, Editora Forense, 1979, p. 84).

É curiosa a dinâmica da História. Às vezes as ideias levam tempo para germinar.

Os juízes de primeiro grau não deveriam ter apenas o direito de votar. Poderia ser eleito para o comando do Poder Judiciário um juiz de primeiro grau. Isto porque, o presidente do Tribunal não é apenas presidente do Tribunal de Justiça. É, ao mesmo tempo, dirigente de um dos Poderes do Estado.

Finalmente, outra questão de Justiça – não Justiça, no sentido estrito, significando Poder Judiciário, mas Justiça, no sentido amplo, como valor ético que deve guiar a vida dos povos.

Caminha-se para estabelecer em alguns Estados da Federação, e já se estabeleceu em outros, uma discriminação contra os aposentados, na esfera do Judiciário. Magistrados da ativa seriam magistrados de primeira classe, com um vencimento maior. Magistrados aposentados seriam magistrados de segunda classe, com vencimento menor.

Na verdade, estabelecer rubricas especiais em favor de magistrados da ativa é apenas uma forma de aumentar vencimentos. E uma forma perversa porque deixa de fora os magistrados aposentados e as viúvas dos magistrados.

Se alguma diferença de proventos ou vantagens de qualquer espécie devesse ser estabelecida entre ativos e inativos, essa diferenciação deveria socorrer os inativos porque as pessoas de mais idade, além das despesas normais, têm despesas suplementares reclamadas por cuidados especiais de saúde.

Esta observação não se aplica apenas aos magistrados mas ao conjunto dos trabalhadores, tanto os que percebem aposentadorias, proventos ou pensões diretamente do erário, quanto os que recebem benefícios da Previdência Social.

Uma sociedade que pretenda guiar-se por padrões éticos jamais discriminará o aposentado. Numa tal sociedade, o aposentado merecerá respeito.

O fluxo das gerações é uma lei histórica e sociológica. E é também uma questão política, no sentido aristotélico da palavra. Uma questão política porque os jovens só podem ter oportunidades se os mais velhos cederem o lugar ao sol.

A geração que se aposentou merece a gratidão das novas gerações. Proporcionar aos aposentados direitos equivalentes aos trabalhadores em exercício é uma questão de Justiça.

João Baptista Herkenhoff, 74 anos, magistrado aposentado, é Professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha e escritor. Autor do livro Dilemas de um juiz: a aventura obrigatória (Rio, GZ Editora).

E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage: www.jbherkenhoff.com.br

domingo, 10 de abril de 2011

Palavras que enganam

João Baptista Herkenhoff

A palavra é talvez a mais expressiva forma de comunicação humana. As palavras, para cumprir seu destino ético, deveriam sempre traduzir mensagens verdadeiras. Entretanto, com muita frequencia, hoje como ontem, as palavras escondem, enganam, ludibriam.

Os mais idosos lembram-se certamente de uma expressão de largo curso em outros tempos: mundo livre. O que era o mundo livre? Era o conjunto dos países que estavam sob a influência, ou a batuta, dos Estados Unidos. Uma das mais sanguinárias ditaduras latino-americanas integrava o mundo livre porque estava alinhada aos interesses, principalmente aos interesses econômicos, da matriz do Norte. Não obstante a propaganda em massa, muitos conseguiam questionar: essa ditadura que tortura, que coloca serpentes nas celas das presas políticas, que mata os opositores e os enterra clandestinamente de modo que nem os corpos das vítimas deixem rastros, essa ditadura também faz parte do abençoado mundo livre? A propaganda respondia: Claro que sim. Essa ditadura é circunstancial, passageira. Assim, o ditador ficava a salvo porque fazia o dever de casa, reverenciava a Estátua da Liberdade.

Outra palavra de grande impacto naquela época: Cortina de Ferro.

O que era a Cortina de Ferro? Era o conjunto dos aparatos que cobriam os países da antiga União Soviética. Esses países não tinham a possibilidade de conhecer a verdade, pois a verdade era privilégio dos países que compunham o Mundo Livre. Pobres países da Cortina de Ferro! Não idolatravam Hollywood, não podiam contemplar a grandeza do capital financeiro, não aprenderam que se mede a felicidade de alguém pelos indices de consumo desse alguém.

Eu me refiro, neste artigo, ao uso da palavra como expediente para submeter as grandes massas ao domínio politico. Não me refiro aos slogans comerciais porque estes são inocentes, ou quase inocentes. O mundo não fica pior, nem melhor, porque o Sabonete Lever é o Sabonete das Estrelas. Já na propaganda da Coca-Cola vai embutida uma filosofia de vida: “Tudo vai melhor com Coca-Cola”; “Onde há Coca há hospitalidade”; “Coca-Cola dá mais vida”.

O uso da palavra, como instrumento de dominação política, é coisa do passado, dos tempos da Guerra Fria? Nada disso. Nos tempos atuais a palavra continua desempenhando o papel de falsear os fatos, de subtrair a versão correta dos episódios.

Certas figuras que, com todos os seus erros, são óbice ao domínio do País do Norte, infalivelmente recebem o carimbo de ditador. Raramente uma notícia refere-se apenas ao nome dessa pessoa deixando a cargo de quem ouve ou lê a notícia colocar o epíteto de ditador. Outros ditadores, da mesma região, igualmente donos absolutos da vontade dos súditos, vizinhos do ditador abominável, nunca são apelidados de ditadores porque não incomodam a Pátria da Liberdade e dos Direitos Humanos.

A lavagem cerebral é muito poderosa. Não se pode negar sua capacidade de submeter milhões de pessoas à condição não pensante. É possível reagir? Sim, é difícil mas é possível, principalmente através do debate. O debate provoca a dúvida, a inquietação, o questionamento.

João Baptista Herkenhoff, 74 anos, magistrado aposentado, trabalha presentemente na Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES). É escritor. Faz palestras pelo Brasil afora. Autor do livro Mulheres no banco dos réus – o universo feminino sob o olhar de um juiz (Editora Forense, Rio).

E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

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sexta-feira, 8 de abril de 2011

Em Recife, com Dom Hélder Câmara

João Baptista Herkenhoff

Nesta página recordo uma viagem que fiz a Recife, em 1997, a convite do Sindicato de Servidores da Fazenda, para falar num congresso da categoria ocorrido em Gravatá. Fui discutir questões éticas ligadas à profissão fazendária. O convite me foi feito por Jorge Luís Amaral, presidente do Sindicato.

Registro outras palestras e visitas que fiz, na mesma oportunidade, inclusive palestra na centenária Faculdade de Direito do Recife. Por fim, o mais importante de tudo: relembro o encontro com Dom Hélder Câmara, fato que deu título a este texto.

A inclusão da Ética, nas preocupações do movimento sindical, revela um aspecto altamente positivo. Mostra a rejeição de uma visão corporativa de mundo, tão comum no interior de algumas categorias profissionais.

Os fazendários pernambucanos elegeram como tema do Congresso: “O Fisco e as mudanças de cenário”. Quiseram discernir tudo que se esconde neste panorama social que o neoliberalismo pretende impor como “ordem econômica”. Examinaram alternativas de resistência, que a sociedade brasileira pode opor, ao projeto neoliberal. Indagaram qual a responsabilidade dos servidores do Fisco, como parcela do conjunto dos trabalhadores, na luta a ser travada.

A pulverização do pensamento, a setorização da análise é um dos instrumentos que as classes dominantes adotam para impedir o conhecimento da realidade. A tentativa de ver o universal, de fugir das visões fragmentárias, quebra o monopólio da pretensa verdade decretada pelos poderosos da Terra.

Em Recife, compareço à Procuradoria da República, a convite da Dra. Sônia Macieira, para falar a Procuradores, Magistrados, servidores da Casa, estagiários e convidados. Debatemos o papel do Ministério Público. Vimos que a Constituição de 1988 ampliou em muito seu eixo de ação, ao lhe confiar, por exemplo, a defesa dos interesses sociais indisponíveis. Hoje o Ministério Público é peça essencial na construção da Democracia.

Vou também à Faculdade de Direito do Recife, a convite da Professora Fátima Oliveira e do Professor e Juiz Federal Dr. Roberto Wanderley Nogueira. Subo com emoção suas escadarias mais que centenárias, piso aquele chão de gloriosas tradições, penetro com unção quase religiosa no Salão Nobre, franqueado à palavra do capixaba pelo Professor Doutor João Maurício Leitão Adeodato.

Visito o GAJOP (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares), uma organização que veio depois a servir de modelo para todo o país. No GAJOP sou recebido por Jayme Benvenuto Lima Júnior e seus companheiros de militância.

Compareço à TV Tribuna, para ser entrevistado, graças à jornalista Wedja Gouveia Gomes.

E como se não bastasse, tenho a oportunidade de rever Dom Hélder Câmara. Fisicamente alquebrado, nos seus mais de 90 anos, porém com os olhos luminosos de uma criança.

Quando lhe presenteio com um livro, no qual aparece uma página sobre D. João Baptista da Mota e Albuquerque, ele comenta com saudade e ternura: um grande Bispo, um grande amigo.

Conto-lhe um fato do qual ele acha muita graça. Digo-lhe que durante o período em que seu nome não podia ser mencionado no rádio, na televisão, no jornal, eu havia “furado” o bloqueio, num jornal do interior do Espírito Santo. Referia-me ao jornal “A Ordem”, de São José do Calçado. Eu era então Juiz da Comarca e, nesse jornal, na edição de 4 de agosto de 1969, publiquei um artigo (Reflexões após um período de férias), em cujo miolo havia cinco parágrafos em sua defesa.

Quem conhece a sociologia das cidades do interior sabe que, na arquitetura do poder local, jamais o redator-chefe de um jornal censuraria um artigo do Juiz de Direito da Comarca, ainda que tendo, na mesa do jornal, ordens expressas de escalões federais proibindo referências a Dom Hélder.

Para fechar a conversa, disse a Dom Hélder uma frase fulminante. Não esperei a reação adversa, pois tinha certeza que viria:

“Meu caro Dom Hélder,

Quando os pósteros olharem para o passado e avaliarem a dimensão de sua presença, na História brasileira, não tenho dúvida de afirmar – O Século XX será o Século de Dom Hélder Câmara.”

João Baptista Herkenhoff, 74 anos, é professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES), palestrante Brasil afora e escritor. Foi um dos fundadores da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória. Autor do livro Ética para um mundo melhor (Thex Editora, Rio).

E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

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sexta-feira, 1 de abril de 2011

Crimes Hediondos

João Baptista Herkenhoff

A nosso ver, não são os tipos penais, por si só, que tornam um crime hediondo. Além do tipo penal, as circunstâncias em que o crime foi cometido é que darão ao crime o caráter de hediondo. Um crime grave, embora continue grave, pode perder o caráter de hediondez, em face de determinadas circunstâncias atenuantes. Um crime menos grave pode, em sentido inverso, assumir extrema gravidade em razão de circunstâncias agravantes.

Cabe ao juiz a missão de individualizar a pena. A individualização da pena, na sentença, e do cumprimento da pena, durante a execução, é justamente a descida da abstração da lei para a concretude das situações com as quais o magistrado se defronta.

A lei dos crimes hediondos seguiu princípio oposto a este. Determinou que certos crimes sejam considerados hediondos, independente de qualquer circunstância e à margem do critério do julgador.

A individualização da pena foi um progresso do Direito conquistado no evolver da História. Não resultou do capricho deste ou daquele legislador, mas de um avanço da cultura humana, no campo do Direito, da Criminologia, da Psicologia, da Antropologia, da Sociologia. A lei dos crimes hediondos derruba o princípio da individualização da pena e representa um retrocesso científico.

O Poder Judiciário, devidamente provocado, tem entendido que “a lei dos crimes hediondos” não fere a Constituição Federal. Parece-me equivocada essa interpretação. Creio que a lei dos crimes hediondos agride frontalmente a Constituição, pois que esta, no item 46 do artigo 5º, estabelece textualmente que a lei regulará a individualização da pena.

Oponho-me à lei dos crimes hediondos, não por razões colocadas com certa freqüência (superlotação dos presídios), mas porque a lei, em si e por si, consagra, a meu ver, um tratamento científico errôneo da matéria, além de ser flagrantemente inconstitucional.

João Baptista Herkenhoff é professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES), Juiz de Direito aposentado e escritor. Autor do livro Filosofia do Direito (GZ Editora, Rio, 2010). E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage:www.jbherkenhoff.com.br