segunda-feira, 18 de julho de 2011

Relembrando uma visita a Natal e a Câmara Cascudo

João Baptista Herkenhoff
Num caderno de anotações, encontro um registro datado de 28 de fevereiro de 1999. Nesse dia, em Guarapari, li uma entrevista do Ministro José Augusto Delgado, publicada na revista “In Verbis”, órgão do Instituto dos Magistrados do Brasil.
Este número a que me refiro é de novembro de 1998.

Ao ler a entrevista de José Augusto Delgado fiquei feliz de verificar que a toga não o descomprometeu dos deveres da cidadania. Delgado alertava, nessa entrevista, para o perigo das privatizações de empresas públicas, que então ocorriam amplamente no Brasil. E observava que o Estado estava quebrando a potencialidade de sua soberania.

A observação de José Augusto Delgado, infelizmente, não se perdeu no tempo. A fidelidade à Pátria requer vigilância permanente.

O pronunciamento de um magistrado de alto tribunal do país, a respeito de um tema político, também corroborava atitude que sempre assumi dentro da magistratura. O que é defeso ao juiz é a política partidária, não o posicionamento em face de assuntos de relevância pública, de interesse nacional.
A leitura da entrevista, naquele ano de 1999, fez-me recuar vinte anos no tempo. Lembrei-me da visita que fiz a Natal, em 1979, quando lá José Augusto Delgado era Juiz Federal e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Convidou-me para ministrar um seminário na cidade. Recebeu a mim e a Teresinha, em sua casa, juntamente com sua esposa, Dona Maria José.
Em julho de 2005, voltamos a Natal.

De regresso a Vitória, publico em “A Gazeta” o artigo “Gestos que falam” (20/07/2005). Republico o mesmo texto no jornal “Tribuna do Norte”, de Natal (edição de 18 de novembro de 2005), com o título “Um capixaba reverencia Câmara Cascudo”.

José Augusto Delgado é hoje Ministro Aposentado do Superior Tribunal de Justiça e professor universitário em Brasília.

A íntegra da matéria, a que me referi acima, eu a transcrevo a seguir.
Estive em Natal. Visitei a casa onde viveu e morreu Câmara Cascudo. Carlos Drummond de Andrade chamou-o de brasileirista, palavra que o Aurélio e o Houaiss não registram, diversamente do termo brasilianista, consignado nos dois dicionários e aplicável, tanto a brasileiros, quanto a estrangeiros que estudam o Brasil.

Drummond certamente viu que Cascudo merecia, singularmente, o título de brasileirista, esse Cascudo que disse “tintim-por-tintim a alma do Brasil em suas heranças mágicas, suas manifestações rituais, seu comportamento em face do mistério e da realidade comezinha.”
Esse Cascudo que, ainda segundo Drummond, “fez coisas dignas de louvor, em sua contínua investigação de um sentido, uma expressão nacional que nos caracterize e nos fundamente na espécie humana.”

A casa de Câmara Cascudo é um verdadeiro templo de brasilidade guardando relíquias que podemos chamar de sagradas, não para diminuir o sentido do “sagrado”, mas para elevar o “humano” a essa condição. Só mesmo um pesquisador que se debruçou sobre o humano com o respeito que se deve ao “sagrado”, teria reunido tantos livros, esculturas, pinturas, fotografias, moedas, fósseis, amuletos, imagens de santos, tudo a revelar a alma brasileira, na sua pujança, na sua individualidade marcante, na sua beleza poética.
Trouxe na bagagem livros do grande escritor potiguar, inclusive reedições de obras que já havia lido na juventude.

Dos livros que trouxe quero destacar “História dos nossos gestos”. O brasileirista de Drummond pesquisou os gestos brasileiros, mas muitos deles são gestos universais. O beliscão, a batida nas próprias nádegas, a mão no queixo, o estalo da língua, o beijo na mão, o dedo na boca, o abano da cabeça, o tirar o chapéu, o beijar a unha do polegar, o apertar a mão do adversário, o coçar a cabeça, a mão na cintura, os dedos em cruz, o puxar os cabelos, o dobrar o indicador em anzol dirigindo-o ao palavroso plagiador, o beijar a própria mão, não sair pela porta por onde entrou, morder os próprios dedos e tantos outros gestos foram pesquisados e analisados por Câmara Cascudo, num estudo cuidadoso, multidisciplinar, com retrospectos históricos, comparação de costumes, referências bibliográficas, enfim um trabalho científico de alguém que mergulhou com paixão na cultura popular para entender e valorizar todo o seu significado.

Falar sobre Câmara Cascudo não está fora do contexto, no Brasil de hoje. Muito pelo contrário. Câmara Cascudo realça a grandeza do povo brasileiro, capaz de vencer com sabedoria as vicissitudes. Sua obra destaca a criatividade do espírito nacional que não precisa copiar do estrangeiro modelos para a solução de seus problemas. Esse brasileirista invulgar nos faz ter orgulho de nossas origens, demonstra quanto de unidade está atrás da multiplicidade de paisagens, credos, escolhas políticas, caracteres individuais ou grupais.
Câmara Cascudo realimenta nossa esperança no Brasil.
João Baptista Herkenhoff, 75 anos, magistrado aposentado, é Professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES) e palestrante Brasil afora. Autor de Mulheres no banco dos réus (Forense, Rio, 2008), Dilemas de um juiz – a aventura obrigatória (Editora GZ, Rio, 2009) e Filosofia do Direito (Editora GZ, 2010).

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