sábado, 30 de julho de 2011

Lei Maria da Penha, MST, Pastoral Carcerária


João Baptista Herkenhoff

O artigo de hoje é destinado a três aplausos que, em síntese, homenageiam a dignidade da pessoa humana.

A Lei Maria da Penha criou uma série de mecanismos com o objetivo de coibir a violência doméstica contra a mulher. Dentre esses mecanismos avultam as chamadas medidas protetivas.
No elenco das medidas de proteção encontram-se tutelas que não são de nossa tradição jurídica como:

a) a proibição de o agressor aproximar-se da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixado o limite mínimo de distância entre aquele e estes;
b) a proibição de contato do agressor com a ofendida, seus familiares e testemunhas, por qualquer meio de comunicação;
c) a proibição imposta ao agressor quanto à frequência a determinados lugares, com a finalidade de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
d) a restrição ou suspensão de visitas do agressor aos dependentes menores, procedimento judicial que deve ser precedido de consulta à equipe de atendimento multidisciplinar, aos psicólogos principalmente.

As medidas protetivas citadas situam-se no campo do processo cautelar. Visam à garantia do bem da vida e da integridade físico-psíquica da pessoa humana.

Aplaudo a Lei Maria da Penha e suas admiráveis inovações.

É o primeiro aplauso deste artigo.
A transigência, o diálogo, o confronto democrático de posições pode conduzir ao encaminhamento de soluções adequadas nos mais diversos campos da convivência humana.

No Brasil, há problemas seculares que não afinam com o sentido de “modernidade”. Uma dessas questões postergadas é justamente a “questão da terra”.
O tema só volta à ordem do dia quando os ânimos se exaltam em face do problema agrário. Esse silêncio é lamentável. O assunto deveria integrar permanentemente a pauta de prioridades nacionais.
Tenho olhos de imensa simpatia para com o MST. A meu sentir é o mais importante movimento social do Brasil contemporâneo.

Aplaudo o MST.

Vamos ao terceiro aplauso de hoje. Tem como endereço a Pastoral Carcerária.

É admirável o trabalho que essa Pastoral realiza há decênios. No Brasil, no Espírito Santo.
Não é uma Pastoral católica, embora tenha nascido dentro da Igreja Católica. É uma Pastoral ecumênica. Convoca a dedicação de católicos, protestantes, espíritas, seguidores de diferentes troncos religiosos, que não apenas o tronco cristão. E ainda convida para a semeadura homens e mulheres de boa vontade que se dedicam ao próximo, mesmo sem definir-se por um credo específico.
A solidariedade para com o preso tem seu fundamento no Evangelho de Jesus Cristo: ”Estive preso e me visitaste”. (Mateus, capítulo 25, versículo 36).

Os militantes da Pastoral Carcerária visitam os presos, testemunham seu sofrimento, solidarizam-se com suas angústias. Constatando a situação macabra que têm diante dos olhos, quando adentram os recintos penais, agem para minorar a dimensão do problema e também denunciam e protestam, quando a fidelidade à causa exigem a denúncia e a indignação.
Aplauso a Pastoral Carcerária.

João Baptista Herkenhoff é professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Autor de Mulheres no banco dos réus – o universo feminino sob o olhar de um juiz (Forense, 2008),Dilemas de um juiz, a aventura obrigatória (GZ, 2009) e Filosofia do Direito (GZ, 2010). Homepage: www.jbherkenhoff.com.br

segunda-feira, 25 de julho de 2011

O dever de depor na idade provecta


João Baptista Herkenhoff

A idade provecta impõe-me o dever de depor.
Presto este depoimento com simplicidade. Penso nos jovens que são os sucessores das gerações que partem. Precisam esses jovens de estímulo, para escolher caminhos que contrastam com o modelo social dominante, que dá mais relevância ao ter do que ao ser.

Fui Juiz de Direito no Estado do Espírito Santo.
Já no início da carreira, rebelamo-nos contra determinação legal que estabelecia fossem os presos mandados para o Instituto de Reabilitação Social em Vitória. Sempre nos pareceu que este procedimento constituía uma violência porque estabelecia o rompimento dos laços familiares do preso. Na Comarca do interior, o preso podia ter contato com sua família.

A reverência à dignidade da pessoa humana impedia tratar o preso como se fosse fera.
Na mesma linha, concedemos direito de trabalho externo ao preso.
A experiência de maior eficácia ocorreu em São José do Calçado, no sul do Espírito Santo, onde a orientação preconizada obteve amplo apoio da comunidade.

Em quatro anos e meio de judicatura na comarca, a reincidência criminal foi de zero por cento. Estribamos nossa conduta na Declaração Universal dos Direitos Humanos que manda preservar, como bem jurídico primário, a dignidade da pessoa humana.

Integramos a Comissão de Justiça e Paz, da Arquidiocese de Vitória, durante o período da ditadura militar, e exercemos sua presidência, contra determinação legal expressa. A lei, em que pretenderam nos enquadrar, nos pareceu inconstitucional e contrária à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Eu integrava essa Comissão, por um imperativo de consciência, e aleguei perante o Tribunal, a que estava subordinado, que a consciência é inviolável.

Acima de ser um juiz, eu era um cidadão e uma pessoa humana. Minha defesa foi acolhida e fiquei livre de punição graças à posição assumida pelo Desembargador Homero Mafra, hoje falecido, mas nunca esquecido.

Lutei, irmanado a Ewerton Montenegro Guimarães, hoje falecido, e a inúmeros concidadãos, pela “anistia ampla, geral e irrestrita” em favor dos brasileiros que foram proscritos pelo golpe de 1º de abril de 1964. Integramos oficialmente o Comitê Brasileiro pela Anistia e discursamos em praça pública e em recintos fechados, em favor da anistia. Entenderam alguns superiores hierárquicos que esse posicionamento era “político”, defeso ao magistrado.

Esclareci que a anistia não era um tema político-partidário. Se assim fosse, estaria proibido ao juiz imiscuir-se nesse assunto. A “anistia” era uma questão de justiça, era a ponte de reencontro dos brasileiros, era o caminho para a redemocratização do Brasil. Do magistrado não se cassara a cidadania e, em nome da cidadania, eu invocava o direito de lutar pela anistia.

Através de um despacho, suspendi a execução de todos os mandados possessórios que implicassem o despejo coletivo de famílias, em Vila Velha, onde judiquei na Vara Cível. Fundamentei o provimento judicial no argumento de que o direito de morar, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, precedia outros eventuais direitos abrigados pelo sistema legal, inclusive o direito de propriedade que, na verdade, não é direito de propriedade, mas direito à propriedade, ou seja, todos têm o direito de ser proprietários, pelo menos da própria casa.

A repetida invocação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nas minhas sentenças, num momento em que o país estava sob a égide do AI-5, era por si só um ato de insubmissão ao arbítrio reinante, insubmissão que manifestamos sem alarde mas com firmeza.

Numa fase histórica em que se proclamava o Brasil Gigante, sem problemas, pus o dedo na ferida, denunciando numa portaria a dramaticidade de milhares de crianças fora da escola (São José do Calçado, 1969).

Determinei a matrícula compulsória das crianças. Pretendi exercer pressão menos sobre os pais, mais sobre o Poder Público, que deveria providenciar as vagas para as crianças que estavam sendo matriculadas por ordem do juiz. A portaria aumentou em 35% a matrícula escolar, na comarca, segundo dados da época.

Não guardo qualquer mágoa de episódios passados. Foram fruto de uma época, felizmente ultrapassada. O que pretendo testemunhar é que sempre vale a pena seguir a própria consciência, ser fiel aos nossos credos. Erros podemos praticar porque, como diz a sabedoria popular, errar é humano. Mas se erramos, com retidão de propósito, o erro será apenas fruto de nossa falibilidade e das contingências que marcam nosso destino.

João Baptista Herkenhoff, 75 anos, magistrado (aposentado), professor (em atividade) na Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha, ES, membro da União Brasileira de Escritores. Autor de Dilemas de um juiz (Editora GZ, 2009) eFilosofia do Direito (também GZ, 2010). E-mail: jbherkenhoff@uol.com.brHomepage: www.jbherkenhoff.com.br

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Supremacia do ser sobre o ter

João Baptista Herkenhoff

Os meios de comunicação social vêm-se encarregando, com agressividade cada vez maior, de propor o consumo como meta de vida. O sistema econômico vigente tem, nos mecanismos de mercado competitivo, o fundamento de sua organização. O parâmetro de êxito pessoal, imposto pela cultura dominante, é possuir e consumir.

Nasci numa casa modesta, em Cachoeiro de Itapemirim. Pais pobres, pobreza escolhida e assumida. Respirei a simplicidade no viver como atmosfera da infância. Ter apenas o essencial, naquela casa em que nasci, era tão espontâneo, que nunca me senti privado do supérfluo.

Foi preciso crescer, ler, refletir, encontrar Gabriel Marcel para compreender a dimensão ética daquele não ter.

Segundo Marcel, o ter é uma fonte de alheamento. Aquilo que possuímos ameaça de nos tragar. Os homens que vivem na zona do ter são almas cativas que sofrem uma deficiência ontológica com a perda do ser. Tais homens são indiferentes ao outro. Não estão à disposição. Fogem no momento de perigo. Para o homem que vive na dimensão do ter, todas as coisas são problemas; para o que entra em seu próprio ser, convertem-se em mistério.

O ser, já por si, é um mistério: não se pode comprovar, computar e dominar, mas apenas reconhecer.

Através de Gabriel Marcel vi explicitada a filosofia da casa em que nasci.

Dentro dessa perspectiva é que entrei para a Academia Espírito-Santense de Letras. Não se tratava de ter: a cadeira, a honra. Mas de ser. Não lutar e morrer pelo mundo das coisas. Não perseguir valores do pragmatismo.

Depois do ingresso na Academia, tive a alegria de constatar que eu me integrava à convivência de pessoas que também vivem na dimensão do ser.

É um grupo fraterno, não de competidores, mas de companheiros.

Como é belo que as vitórias de cada um sejam celebradas por todos: cada livro publicado, cada prêmio conquistado, cada viagem pelos caminhos do mundo, tudo isto é vivido na partilha.

Comparecer às reuniões não é uma obrigação, mas um momento de fraternidade e de paz.

No poema Fraternidade, ao desenhar este sentimento, que é o mais nobre do espírito humano, Newton Braga escreveu:

“Esta sensibilidade, que é uma antena delicadíssima,

captando pedaços de todas as dores do mundo,

e que me fará morrer de dores que não são minhas.”

Só há disputa, dentro da Academia, no momento da escolha de um novo membro: sempre vários candidatos concorrem à vaga que se apresenta.

Mas depois, quando o candidato derrotado numa eleição é vitorioso na eleição seguinte, o primeiro a saudar o novo confrade é justamente aquele acadêmico que foi competidor do que é agora sufragado pela maioria.

Na solenidade de posse (por força de uma tradição mais que centenária), o novo acadêmico é saudado por um membro da casa. No meu caso particular, fui saudado pelo inesquecível magistrado, professor, escritor, intelectual de múltiplos saberes – Clóvis Rabelo. Não me lembro apenas das palavras, mas também dos gestos, da fisionomia, da pujança espiritual do Doutor Clóvis, naquela noite.

Mas voltemos a Gabriel Marcel. Segundo esse filósofo, um discurso acadêmico pode ser um problema ou um mistério. Será um problema se for encarado como algo que nos corta o passo, um gigante assustador com o qual o orador se defronta.

Será mistério na medida em que o orador se veja metido nele, na medida em que seu próprio ser nele se implique e se comprometa.

Foi como mistério que, na inesquecível noite de posse, busquei encontrar o espírito de Aristóbulo Barbosa Leão, meu antecessor, a fim de lhe descobrir a identidade, os motivos, a razão existencial.

Esforcei-me por reconstituir a figura dele, como é de praxe nas posses acadêmicas.

Aristóbulo era homem de vida disciplinada. Não fumava. Não bebia. Era organizado e pontual. O Ginásio São Vicente era a menina de seus olhos. A ele dedicou-se, integralmente.

Não obstante a disciplina rígida adotada, seu relacionamento com os alunos era muito carinhoso. Os alunos brincavam com ele e a todos conhecia pelo nome. Estava sempre disposto a orientar e aconselhar. Nunca elevava a voz quando se dirigia a alguém. Valorizava o trabalho dos professores, incentivava-os. Criava no ginásio um ambiente de cooperação.


Manteve-se solteiro até o fim da vida. Espírito místico, é possível que tenha escolhido o celibato para realizar a doação total.

Professava a fé espírita.

Inspirava a mais completa confiança.

Amava a natureza e gostava de cantar.

Alguns de seus mais íntimos colaboradores, no Ginásio, acham que ele não foi compreendido, pensam que foi esquecido pelo povo e que, no atual Ginásio São Vicente, não há mais sua presença.

Seu centenário de nascimento (1987) não foi reverenciado.

Algum dia sua memória terá de ser resgatada em todo o seu esplendor e grandeza.

A grande obra de Aristóbulo Barbosa Leão não foi a obra literária, porém a fundação do Ginásio São Vicente. E o maior gesto de sua vida foi a doação do Ginásio à Prefeitura Municipal de Vitória.

O artista contemporâneo Joseph Beuys vem alargando o conceito de arte para compreender nele toda a criatividade humana. Assim o professor, o cientista, o filósofo, o revolucionário, o utopista são todos artistas.

Nessa colocação de Beuys parece que não tem sentido separar o biográfico do biobibliográfico. A biografia é bibliografia porque a vida mesmo é criação.

Tudo que fez, tudo que falou, tudo que escreveu Aristóbulo teve como núcleo o Ginásio.

Quanto à pedagogia de Aristóbulo Barbosa Leão cometeríamos um erro metodológico – o anacronismo – se pretendêssemos examinar seu pensamento à luz das ideias vigentes hoje, em matéria de ensino.

Contudo, mesmo no seu tempo, Aristóbulo tinha a compreensão de princípios ainda bastante atuais.

Não obstante seu colégio destacasse o mérito individual, ele entendia que cada um deveria crescer segundo sua medida e que havia tempo para todos progredirem.

O respeito à pessoa humana fica evidenciado quando, num edital de notas obtidas pelos alunos, constata-se que foram omitidos os nomes dos alunos insuficientes e reprovados.

Aristóbulo Barbosa Leão, se vivo fosse, não manteria no “São Vicente” de hoje a pedagogia de ontem. Ele acreditava numa “lei universal do ritmo” e na “lei da evolução”.

Tudo deve ser renovado. De permanente, em Aristóbulo, é o amor que teve à educação, a consagração integral do homem à obra, a fidelidade a princípios nos quais acreditava. São valores que o tempo não modifica.

João Baptista Herkenhoff, 75 anos, magistrado aposentado, é membro da Academia Espírito-Santense de Letras e da União Brasileira de Escritores. Seus mais recentes livros são Mulheres no banco dos réus (Editora Forense, 2008); Dilemas de um juiz – a aventura obrigatória (Editora GZ, 2009); Filosofia do Direito (GZ, 2010).

E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

Homepage: www.jbherkenhoff.com.br

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Relembrando uma visita a Natal e a Câmara Cascudo

João Baptista Herkenhoff
Num caderno de anotações, encontro um registro datado de 28 de fevereiro de 1999. Nesse dia, em Guarapari, li uma entrevista do Ministro José Augusto Delgado, publicada na revista “In Verbis”, órgão do Instituto dos Magistrados do Brasil.
Este número a que me refiro é de novembro de 1998.

Ao ler a entrevista de José Augusto Delgado fiquei feliz de verificar que a toga não o descomprometeu dos deveres da cidadania. Delgado alertava, nessa entrevista, para o perigo das privatizações de empresas públicas, que então ocorriam amplamente no Brasil. E observava que o Estado estava quebrando a potencialidade de sua soberania.

A observação de José Augusto Delgado, infelizmente, não se perdeu no tempo. A fidelidade à Pátria requer vigilância permanente.

O pronunciamento de um magistrado de alto tribunal do país, a respeito de um tema político, também corroborava atitude que sempre assumi dentro da magistratura. O que é defeso ao juiz é a política partidária, não o posicionamento em face de assuntos de relevância pública, de interesse nacional.
A leitura da entrevista, naquele ano de 1999, fez-me recuar vinte anos no tempo. Lembrei-me da visita que fiz a Natal, em 1979, quando lá José Augusto Delgado era Juiz Federal e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Convidou-me para ministrar um seminário na cidade. Recebeu a mim e a Teresinha, em sua casa, juntamente com sua esposa, Dona Maria José.
Em julho de 2005, voltamos a Natal.

De regresso a Vitória, publico em “A Gazeta” o artigo “Gestos que falam” (20/07/2005). Republico o mesmo texto no jornal “Tribuna do Norte”, de Natal (edição de 18 de novembro de 2005), com o título “Um capixaba reverencia Câmara Cascudo”.

José Augusto Delgado é hoje Ministro Aposentado do Superior Tribunal de Justiça e professor universitário em Brasília.

A íntegra da matéria, a que me referi acima, eu a transcrevo a seguir.
Estive em Natal. Visitei a casa onde viveu e morreu Câmara Cascudo. Carlos Drummond de Andrade chamou-o de brasileirista, palavra que o Aurélio e o Houaiss não registram, diversamente do termo brasilianista, consignado nos dois dicionários e aplicável, tanto a brasileiros, quanto a estrangeiros que estudam o Brasil.

Drummond certamente viu que Cascudo merecia, singularmente, o título de brasileirista, esse Cascudo que disse “tintim-por-tintim a alma do Brasil em suas heranças mágicas, suas manifestações rituais, seu comportamento em face do mistério e da realidade comezinha.”
Esse Cascudo que, ainda segundo Drummond, “fez coisas dignas de louvor, em sua contínua investigação de um sentido, uma expressão nacional que nos caracterize e nos fundamente na espécie humana.”

A casa de Câmara Cascudo é um verdadeiro templo de brasilidade guardando relíquias que podemos chamar de sagradas, não para diminuir o sentido do “sagrado”, mas para elevar o “humano” a essa condição. Só mesmo um pesquisador que se debruçou sobre o humano com o respeito que se deve ao “sagrado”, teria reunido tantos livros, esculturas, pinturas, fotografias, moedas, fósseis, amuletos, imagens de santos, tudo a revelar a alma brasileira, na sua pujança, na sua individualidade marcante, na sua beleza poética.
Trouxe na bagagem livros do grande escritor potiguar, inclusive reedições de obras que já havia lido na juventude.

Dos livros que trouxe quero destacar “História dos nossos gestos”. O brasileirista de Drummond pesquisou os gestos brasileiros, mas muitos deles são gestos universais. O beliscão, a batida nas próprias nádegas, a mão no queixo, o estalo da língua, o beijo na mão, o dedo na boca, o abano da cabeça, o tirar o chapéu, o beijar a unha do polegar, o apertar a mão do adversário, o coçar a cabeça, a mão na cintura, os dedos em cruz, o puxar os cabelos, o dobrar o indicador em anzol dirigindo-o ao palavroso plagiador, o beijar a própria mão, não sair pela porta por onde entrou, morder os próprios dedos e tantos outros gestos foram pesquisados e analisados por Câmara Cascudo, num estudo cuidadoso, multidisciplinar, com retrospectos históricos, comparação de costumes, referências bibliográficas, enfim um trabalho científico de alguém que mergulhou com paixão na cultura popular para entender e valorizar todo o seu significado.

Falar sobre Câmara Cascudo não está fora do contexto, no Brasil de hoje. Muito pelo contrário. Câmara Cascudo realça a grandeza do povo brasileiro, capaz de vencer com sabedoria as vicissitudes. Sua obra destaca a criatividade do espírito nacional que não precisa copiar do estrangeiro modelos para a solução de seus problemas. Esse brasileirista invulgar nos faz ter orgulho de nossas origens, demonstra quanto de unidade está atrás da multiplicidade de paisagens, credos, escolhas políticas, caracteres individuais ou grupais.
Câmara Cascudo realimenta nossa esperança no Brasil.
João Baptista Herkenhoff, 75 anos, magistrado aposentado, é Professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES) e palestrante Brasil afora. Autor de Mulheres no banco dos réus (Forense, Rio, 2008), Dilemas de um juiz – a aventura obrigatória (Editora GZ, Rio, 2009) e Filosofia do Direito (Editora GZ, 2010).

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Preso, estudo, esperança


João Baptista Herkenhoff

Aplaudo com veemência a Lei 12.433, que possibilita o desconto de um dia de pena, em favor dos sentenciados, como prêmio para cada doze horas de frequencia escolar. Sancionada pela Presidente Dilma Roussef, esta lei resultou de um projeto do Senador Cristovam Buarque. Só mesmo um educador, que é hoje circunstancialmente senador, poderia ter sensibilidade para compreender o alcance social dessa iniciativa.
A redução da pena através da prestação de trabalho pelo preso já era prevista em lei. A novidade agora é dar ao estudo o mesmo efeito. O benefício legal recebe, tecnicamente, o nome de remição da pena. A frequencia escolar, de acordo com a lei citada, pode ocorrer no ensino fundamental, médio (inclusive profissionalizante), de requalificação profissional e superior, tanto na modalidade presencial, quanto na modalidade de ensino à distância. Será permitido somar o tempo remido pelo trabalho ao tempo remido por via do estudo.

Dante escreveu na Divina Comédia, obra clássica da Literatura mundial, que aqueles que ingressavam no Inferno deviam deixar no vestíbulo toda e qualquer esperança. De certa forma, o ingresso na prisão, quando essa é um inferno, como tantas vezes é, infunde no preso o mesmo sentimento de desespero.
Se a educação é crescimento e escada para as pessoas em geral, no caso do preso educação é resgate da cidadania e da própria condição humana.

Quando a prisão, em vez de redirecionar a vida do sentenciado, constitui fator de degradação da personalidade, deixa de constituir defesa social para assumir, na verdade, o papel de perigo social, pois a reincidência criminal é um grande peso para a sociedade. Afeta a vida e a segurança de milhões de brasileiros. Prevenir a reincidência através da educação é um serviço público de utilidade geral.

A aprovação desta lei deve ser celebrada, como um avanço jurídico, mas não basta sua simples existência para que seus objetivos sejam alcançados. Há todo um trajeto a ser percorrido, em cada um dos Estados da Federação, em cada uma das comarcas espalhadas pelo Brasil afora, de modo a incentivar e possibilitar o acesso ao estudo para todos os presos que queiram utilizar esse caminho como porta de liberdade e de recuperação da essência de ser.
Um papel fundamental nesta empreitada caberá ao Poder Judiciário, mas o Poder Executivo não pode faltar na tarefa que lhe caberá.

Não posso tratar deste tema sem me lembrar da década de 1960 na comarca de São José do Calçado, onde fui Juiz de Direito durante quatro anos. Naquela cidade, com amplo apoio da comunidade, pudemos fazer funcionar a escola dos presos, ao lado da Cadeia Pública local. Maria de Lourdes Rezende Faria é o nome da professora que dava aula para os presos, sem receber um só centavo de remuneração. Ao final do primeiro dia de aula, Maria de Lourdes prescreveu, como se faz habitualmente nas escolas, o chamado “dever de casa”. Foi então que um preso inteligente e espirituoso perguntou: “Professora, dever de casa ou dever da cadeia?”

João Baptista Herkenhoff é professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha e escritor.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Refúgio, ato humanitário

João Baptista Herkenhoff
Cesare Battisti, ex-integrante de grupos de extrema esquerda nos anos setenta, ficará no Brasil. O STF, por seis votos contra três, em decisão prolatada recente, concluiu que é legal o ato do ex-Presidente Lula negando a extradição pedida pelo governo da Itália.
O Supremo fixou ainda que, depois que a Justiça determina a extradição, a decisão de entregar, ou não, a pessoa sub judice ao Estado estrangeiro, cabe apenas ao Presidente da República. É o que, na linguagem do Direito, chama-se decisão discricionária. Um dos efeitos da decisão discricionária, como o Supremo Tribunal realçou, é que não pode ser revista pelo Poder Judiciário.
Quando eu era Juiz da ativa, estava submetido à obrigação funcional de cumprir os acórdãos das cortes superiores quando essas cortes cassavam minhas modestas sentenças. Podia discordar, mas não podia me rebelar.
Agora, aposentado, não tenho mais esse dever de ofício.
Frequentemente tenho apodado de injustos e não jurídicos alguns acórdãos de tribunais, inclusive do tribunal que, por ser o mais alto do país, é chamado de Excelso Pretório. O adjetivo parece-me exagerado porque somente Deus pode ser reconhecido como excelso.
No caso Battisti, entretanto, tiro o chapéu para o Supremo. Tiro o chapéu igualmente para o ex-Presidente Lula que, usando da discricionariedade que a Constituição lhe faculta, negou a extradição.
A meu ver, a matéria está sendo discutida com um passionalismo que impede compreender a dimensão ética e humana do refúgio.
A concessão do asilo político não é um acidente, um pormenor no conjunto das estipulações do ordenamento jurídico brasileiro. O asilo político é princípio que fundamenta as relações internacionais do Brasil.
Nossa Constituição deu plena guarida ao artigo catorze da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que cuida do asilo. Atendeu o clamor da sociedade, honrou o sangue e o sacrifício dos que se opuseram à ditadura instaurada no país em 1964 e aprofundada em 1968. Procurou fixar para o país rumos em direção à Justiça, à Solidariedade, ao Humanismo e à Paz.
Não obstante a regra constitucional, o Brasil tardou em criar mecanismos legais para a implementação do Estatuto do Refugiado em nosso país. O Estatuto é de 1951, mas somente em 1997 a Lei 9.474, sancionada pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso, cuidou de fornecer os instrumentos legais para que aquele documento tivesse vigência efetiva na ordem jurídica nacional.
O asilo não é uma questão apenas jurídica. É uma questão ética também. Por este motivo, as grandes religiões praticadas no mundo sustentam a “ideia de asilo”.
Chegamos a essa conclusão quando nos debruçamos diante dos grandes textos do Cristianismo, do Judaísmo, do Islamismo, do Budismo, do Taoísmo, do Confucionismo.
No Deuteronômio, livro sagrado para cristãos e judeus, afirma-se, expressamente, o direito de asilo.
O Alcorão determina o acolhimento, sem ressalvas, daquele que não está na sua Pátria.
Os horizontes de vida apontados pela ética budista, taoísta, confucionista consagram o asilo como decorrência dos seus postulados.
João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado, é professor da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha e escritor. Um dos fundadores e hoje membro emérito da Comissão de Justiça e Paz, da Arquidiocese de Vitória. E- mail: jbherkenhoff@uol.com.br

sábado, 9 de julho de 2011

O desânimo do turismólogo e a “indústria que não polui”

Outro dia, observei o diálogo de alguns jovens barrenses numa dessas redes sociais e o assunto, contrariando a normalidade dos temas recorrentes no universo juvenil, era o desânimo em relação ao curso que estão fazendo: Turismo.

O papo era que não viam perspectivas de conseguir um bom emprego depois que concluíssem o curso, por isso, alguns diziam que já estavam partindo para outra, aguardando apenas a conclusão dos últimos períodos, para tentarem uma atividade profissional que nada tem a ver com o curso que irão concluir.

É evidente que muitos jovens, sobretudo de cidades do interior, têm dificuldades em vislumbrar um futuro promissor tendo em vista a realidade que os cerca. Caso não sejam funcionários públicos (Prefeitura), sobram poucas oportunidades no mercado de trabalho que no caso de Conceição da Barra, resume-se às usinas de açúcar e álcool e ao comércio local que, invariavelmente, é preterido pelo comércio da cidade vizinha.

Mas, até quando exportaremos jovens para os grandes centros urbanos que por sinal já estão acima de sua capacidade de suporte? Estamos andando em círculos, porque na medida em que não geramos as oportunidades aqui onde estamos, somos obrigados a mandar os nossos filhos para outras cidades, na expectativa de que ao fazer isso estaremos oferecendo o “melhor” para eles.

Acredito na nossa capacidade de manter os nossos jovens aqui na cidade, sem perdê-los para o crack e o acoolismo, na medida em que acreditarmos que a solução reside em simples e eficazes ações de governo. É novidade para alguém que o nosso município tem por vocação o Turismo e a Pesca? Acredito que não, portanto, no caso do Turismo, por que não buscamos alternativas que alavanquem a cidade como fez Porto Seguro, na Bahia, que há 30 anos (mais ou menos) estava esquecida em meio ao atraso e à também falta de perspectivas futuras? Porém, o que tem nos faltado é a capacidade para escolher “projetos de governo” e não pessoas que, cada qual ao seu modo, querem apenas a perpetuação no poder, executando ações que tem por finalidade específica a sua reeleição, ignorando as reais necessidades do município.

Quem disse que a prioridade de Conceição da Barra é calçar ruas? E se assim o fosse, quais os critérios para escolha das ruas a serem calçadas? Penso que uma cidade que não investe no estímulo aos educadores – só para exemplificar - premiando-os por mérito como vem fazendo o governo do estado, não pode e nunca conseguirá alcançar os objetivos básicos de uma cidade que quer manter seus jovens no lugar em que nasceram.

Conceição da Barra é o nosso País, portanto, devemos cuidar do nosso país em todos os sentidos. Um país precisa de jovens ativos e com o coração cheio de sonhos e a expectativa de um futuro promissor, de oportunidades. Quem estiver lendo este artigo saiba que o faço porque acredito em minha cidade e não me alegro em saber que estudantes de Turismo, uma atividade que deveria ser o “carro-chefe” do nosso desenvolvimento, seja tão desprezada que os estudantes estejam desanimados e prontos para partirem para outra, porque não acreditam na atividade, nem aqui e nem na região norte do ES.

A crítica cabe também aos municípios vizinhos, tais como São Mateus, que embora tenha a enorme vantagem de estar às margens da BR, também tem no seu governo a marca do tacanhismo, da incapacidade de enxergar as possibilidades de desenvolvimento, através do Turismo, que serão tão exploradas em tempos de Copa do Mundo e Olimpíadas, no Brasil.

Falta muita coisa, mas o que mais falta é humildade em reconhecer que um governo não se faz sozinho. Lamento que tenhamos chegado a um ponto em que até quem tem oportunidade de estudar, esteja ainda mais desmotivado do que aqueles que não tiveram.

sábado, 2 de julho de 2011

A Política e os “Mitos”

Me sinto solitário falando sobre o tema que vou discorrer agora, mas não desistirei de tentar faze-lo na expectativa de que através desse pensamento, as pessoas possam sentir-se provocadas a tentar compreender a importância dessa discussão para encontrar os caminhos que nos levem às soluções dos problemas que vivemos em sociedade. Problemas sempre existirão, mas quando não há discussão sobre as soluções mais viáveis, eles se tornam parte da paisagem.

A morte do ex-presidente da República, Itamar Franco, ocorrida hoje em São Paulo, é mais um episódio emblemático do que venho falando a respeito dos “mitos” na política e o perigo que isto representa para a verdadeira e legítima democracia. A distância que as pessoas estabeleceram entre a sua vida cotidiana e a política, facilitaram a criação desses “mitos” que num passado recente, eram chamados de “salvadores da pátria”, expressão que ganhou fama nacional numa novela exibida na Rede Globo, através da personagem Sassá Mutema, interpretado pelo ator Lima Duarte.

É óbvio que temos que dar os créditos às pessoas que colocaram seus nomes à disposição para representar um projeto político, entretanto, o que se verifica é que na medida em que esse projeto sagra-se vencedor, instantaneamente ganha um “dono” e a idéia, o planejamento e os sonhos compartilhados, propriamente ditos, se perdem nos devaneios daquele a quem empenhamos nosso esforço e luta para que fosse o representante do projeto em questão.

Política não se faz sozinho. É preciso ter consciência de que todas as ações devem ser criteriosamente analisadas por todos aqueles que fazem parte da construção do projeto e na medida em que não haja consenso, o conceito de “maioria” passa a ser o melhor critério de decisão por parte de quem o representa. Os “mitos” que estão sempre presentes no modelo de política vigente, impede que a verdadeira democracia seja exercida, uma vez que a “sua vontade” torna-se soberana, em detrimento do conselho político que deveria haver num governo efetivamente democrático.

Não quero fazer comparações entre um mito ou outro, porque todos são criados através dos mesmos critérios. Menciono Itamar Franco porque num momento em que o Brasil passava por um dos seus períodos mais difíceis, ele surge com uma idéia construída a várias mãos que desencadeou o processo de criação e fortalecimento da moeda brasileira atual e a estabilização econômica tão necessária naquele momento. Seu compromisso com o projeto, com o Brasil foi tão importante que o seu principal ministro, Fernando Henrique Cardoso, foi projetado ao cargo de Presidente da República para representar a idéia, o projeto, tão bem elaborado sob a responsabilidade do então presidente da República Itamar Franco.

Nos municípios, por exemplo, é tão arraigada a idéia dos “mitos” que torna-se preocupante imaginar quem poderia se candidatar ao cargo máximo (prefeito municipal) que não sejam os nomes de sempre. Com a geopolítica, estratégia estabelecida no país sob a égide da “união em nome do coletivo”, ficou ainda mais complicado o caminho de quem vislumbra um espaço na política, desestimulando ainda mais aqueles que gostariam de dar sua contribuição para uma cidade melhor, um país melhor, por saber que com a “mitologia” presente, o debate e a política genuína, cedem lugar aos pequenos grupos que entendem representar os interesses da coletividade e utilizam de todos os meios imagináveis e inimagináveis para fazerem valer a sua vontade.

O povo precisa se aproximar da política, dos partidos políticos e passarem a, de fato, participarem do processo. Não há como governar o povo, sem a sua presença. É inconstitucional! O poder emanava do povo! Mas para isso, é preciso se organizar, do contrário, é anarquia e anarquia só se justifica sob o caos...